Às treze horas e doze minutos do dia 29 de Novembro de 1942, os tripulantes do Afonso de Albuquerque viram a primeira prova do naufrágio: um colchão passou perto do casco. Treze minutos depois detectaram as primeiras jangadas com sobreviventes e, 27 horas depois, concluíam a maior operação de resgate realizada por navios portugueses no Oceano Indico, recolhendo um total de 194 pessoas.
Capa da "Revista da Marinha" de 10 de Novembro de 1941, pouco antes de partirem para o Oceano Indico.
Os náufragos pertenciam ao paquete "Nova Scotia" afundado, na manhã de 28, pelo submarino alemão U-177. Três torpedos atingiram o navio pouco depois das sete da manhã e em menos de dez minutos este afundou-se deixando na água 1052 pessoas. 766 - segundo os relatórios do Afonso de Albuquerque –eram prisioneiros e internados italianos, entre os quais havia três mulheres, uma delas com uma filha de 11 anos. Os restantes eram militares ou guardas ingleses e sul-africanos.
O navio tinha descido desde o Suez, passara por Moçambique e, frente à costa de Natal, sofreu o ataque com os três torpedos que o partiram ao meio. Muitos perderam a vida de imediato e outros nos momentos que se seguiram.
A criança, de onze anos, afogou-se quando o colete que vestia se soltou no momento em que caiu na água.
O comandante do U-Boat, Robert Gysae, recolheu dois dos náufragos para interrogatório e percebeu que a maioria eram prisioneiros de guerra italianos. Como no princípio da guerra, um U-Boat tinha sido atacado por um avião enquanto rebocava - para um local mais seguro - os salva-vidas do navio "Laconia", o comando alemão proibiu a realização de salvamentos, razão porque, neste caso, foi enviada uma mensagem urgente ao alto comando da marinha em Berlim.
A comunicação seria enviada para a Legação Alemã em Lisboa, que a passou às autoridades portuguesas que, por sua vez, a despacharam para Lourenço Marques, em cujo porto se encontravam, por coincidência, o aviso de 1ª classe Afonso de Albuquerque e o aviso de 2ª classe Gonçalves Zarco, ultimando os preparativos para regressar a Lisboa, depois de duas campanhas longas pelas colónias africanas e na Índia.
A informação cifrada chegou a Lourenço Marques já noite e o Afonso de Albuquerque começou a preparar-se por volta das 22 horas, quase 14 horas depois do torpedeamento.
O comandante do Gonçalves Zarco também quis aprontar o seu navio, mas recebeu ordens para não o fazer. Só seria chamado caso fosse necessário.
Rumo ao desastre
Eram duas e meia da manhã quando o navio rumou a sul à procura dos sobreviventes do naufrágio. Ao meio dia, e depois de navegarem mais de 160 milhas, chegaram às coordenadas avançadas pelo submarino, mas o mar estava vazio.
Só passada uma hora, rumando a sul, encontraram as primeiras provas do desastre que atingira o “Nova Scotia”. Os destroços encontravam-se muito dispersos. Aqui e ali viam-se jangadas isoladas, mais longe uma baleeira com uma bandeira azul reunia outros sobreviventes à sua volta. Havia também muita gente só, agarrada a todo o tipo de destroços flutuantes.
O comandante decidiu deixar o grupo da baleeira para o final e começou por recolher as jangadas e os náufragos que se encontravam dispersos, para evitar que estes se afastassem ainda mais.
Com as baleeiras e o escaler a gasolina começaram a longa tarefa. Às 16 horas encontraram uma das mulheres. Mais ou menos à mesma hora um dos náufragos recolhidos, um oficial britânico, morria bordo apesar dos esforços do médico.
Ao cair da noite estavam, a bordo 122 pessoas e o navio continuou, utilizando os projectores, a recolher gente.
Quando raiou o sol, na manhã seguinte, encontravam-se no centro da tragédia. Centenas de corpos boiavam em redor do Afonso de Albuquerque. A guerra revelava, mais uma vez, a sua faceta mais sinistra, mas o trabalho dos homens do aviso português continuava.
Numa separata, publicada nos Anais do Club Militar Naval de 1952, o 1º tenente Gomes Ramos, recorda a resiliência de alguns dos que foram recolhidos durante a operação de resgate.
Aponta o exemplo da mulher que perdeu a filha e que durante 30 horas nadou sozinha até encontrar lugar numa jangada. Um lugar deixado vago por um homem que, em desespero, decidiu morrer e saltou para a água.
Dois dias depois do naufrágio um homem foi encontrado esgotado, a dormir profundamente, agarrado a uma mesa de jogo. Entre os sobreviventes estava também um luso-descendente que levou o tempo a falar do navio Gil Eanes.
Mais triste foi o caso de uma mulher que se atirou ao mar, quando viu o navio português aproximar-se, e não voltou a ser vista.
Um outro episódio também deixou marcas porque foi um dos poucos actos de humanidade entre “inimigos” que os portugueses testemunharam.
Um italiano, mais idoso, quis atirar-se ao mar repetidas vezes tentando chegar ao Afonso de Albuquerque. O companheiro de jangada, um jovem britânico, impediu-o de concretizar essa vontade e, face ao cansaço que apresentava, salvou-lhe certamente a vida. Seriam dos últimos a ser recolhidos…
A recolha dos náufragos trouxe um inesperado problema aos tripulantes do Afonso de Albuquerque. Mesmo na água, aliados e italianos não se tinham misturado, com a luta por um lugar nas jangadas a obedecer a dois critérios distintos. Primeiro a lei do mais forte e depois a lei da bandeira.
Ao murro ou à facada os dois grupos tinham conquistado o direito aos destroços flutuantes que lhes poderiam salvar a vida. Em Jangada, destroço ou baleeira onde estavam italianos, não se encontravam britânicos ou sul-africanos e vice-versa.
Esta rivalidade continuou a bordo do navio português. Ex-carcereiros e ex-encarcerados continuaram a destilar ódios e inimizades sem se misturarem. O espaço a bordo teve de ser dividido para evitar problemas maiores até ao regresso a Lourenço Marques, no dia 1 de Dezembro.
No afundamento do “Nova Scotia” perderam-se, entre marinheiros, militares e passageiros, 212 militares e civis aliados e 646 prisioneiros e internados italianos.
Graças à acção do navio português foi possível salvar 64 aliados e 130 italianos. Destes últimos, e sem possibilidade de apanhar um navio para abandonar a colónia portuguesa, vários ficariam por Lourenço Marques e alguns até se juntariam a uma rede de espionagem do Eixo que ali funcionou.
Um veterano de resgates no Indico
Á espera no porto, e com os serviços radiotelegráficos em alerta permanente, o Gonçalves Zarco não recebeu qualquer pedido de ajuda, mas um relatório do comandante, o capitão-de-fragata Joaquim Marques Esparteiro, deixa claro que não ficou satisfeito com a forma como o comandante do Afonso de Albuquerque dirigiu as operações: “(…) fiquei bastante surpreendido quando (…) me disse que, se os dois navios tivessem saído, se teriam salvo provavelmente mais náufragos. (…)o serviço de dois navios teria sido de grande utilidade e o número de pessoas salvas provavelmente muito maior. Ainda hoje não compreendo porque o comandante do Afonso de Albuquerque não solicitou o concurso deste navio”.
A incompreensão terá sido ainda maior porque o Gonçalves Zarco estava em envolvido em operações de socorro e resgate no Oceano Indico há vários meses.
Em Junho de 1942 os portugueses tinham recebido um pedido de ajuda do cônsul britânico da Beira. Dois navios, o “Atlantic Gulf” e o “Wilford” tinham sido afundados pelo submarino japonês I-10 no Canal de Moçambique, respectivamente a 5 e 7 de Junho, e com poucos recursos disponíveis pedia-se a nossa colaboração.
Durante vários dias o aviso português cruzou o Indico em busca de sobreviventes encontrando, no dia 13, dois tripulantes chineses do cargueiro norueguês “Wilford”. Tinham visto o seu navio ser afundando a tiros de canhão, e apresentavam feridas de alguma gravidade. Um, com 24 anos, tinha ferimentos na cabeça e fracturas expostas nos membros, enquanto o outro, de 35 anos, tinha sido atingido por estilhaços de projécteis.
Depois de vários dias no mar, ambos tinham “a roupa fétida”, as feridas “com infecções e supurentas” ou “necrosadas”.
Outros náufragos daqueles dois navios foram resgatados por navios de passagem e, alguns, seriam até deixados em Lourenço Marques para recuperarem das mazelas físicas e psicológicas.
Para premiar o empenho do aviso português, o cônsul britânico da Beira elogiou oficialmente os tripulantes do Gonçalves Zarco e ofereceu uma centena de cigarros a cada um dos tripulantes.
Poucos dias depois do Afonso de Albuquerque ter salvo os tripulantes do “Nova Scotia”, também o Gonçalves Zarco se veria no papel de salvador. A 7 de Dezembro saiu de Lourenço Marques, com ordens para regressar a Lisboa e, Marques Esparteiro, definiu um rumo que desenhava um arco largo que deixava a costa sul-africana a grande distância. Passou entre as 50 e as 60 milhas da costa para evitar quaisquer problemas, quer com navios aliados, quer com submarinos alemães.
A definição desta rota, tão longe das habitualmente percorridas, viria a permitir o salvamento dos únicos sobreviventes do cargueiro panamiano "Amarylis", afundado no dia 2 por um torpedo do submarino alemão U-181. Sob um tempo chuvoso o navio partiu-se ao meio e desapareceu em menos de cinco minutos. Apenas seis dos 37 homens a bordo conseguiram escapar num bote.
Quando o Gonçalves Zarco os encontrou, estavam há sete dias no mar e tinham sido arrastados mais de 300 milhas do local do naufrágio. Longe das principais rotas é possível que nunca fossem encontrados.
Os seis homens ficaram no porto do Lobito, em Angola, na primeira escala do navio de guerra português no Atlântico.
Os homens do Director
O Gonçalves Zarco retomaria a sua acção humanitária no Indico em 1944, agora sob comando do capitão de fragata Zola da Silva. Ao fim da tarde de 18 de Julho zarpou de Lourenço Marques para Nacala, onde deveria encontrar-se com o Afonso de Albuquerque para um exercício conjunto de tiro.
Por volta das nove e meia da noite a tripulação avistou um luz vermelha. Parecia um very-light.
Seguiram-se outros e o Gonçalves Zarco mudou de rumo e ligou os projectores. Meia hora depois encontrou um bote com o comandante Weatherall, sete oficiais e 21 tripulantes do cargueiro britânico "Director", afundado no dia 15 por volta da 1 da manhã, no canal de Moçambique, por um torpedo do submarino alemão U-198.
Após o ataque os tripulantes dividiram-se por dois botes. Um deles morreria durante o embarque, mas os restantes 57 conseguiram abandonar o navio sem mais problemas. Os dois botes navegaram em conjunto até à noite do dia 16, mas depois separam-se. Um seria recolhido pelo navio português e do outro chegariam notícias da África do Sul, dias mais tarde.
Mar inseguro
O Indico, tal como o Atlântico, foi palco de inúmeros afundamentos, mas a guerra submarina, de um lado ou do outro tiveram aspectos diferentes. No Atlântico os navios viajavam normalmente em comboio, protegidos por vasos de guerra e, muitas vezes, também por aviões. No Indico os cargueiros seguiam demasiadas vezes sozinhos. Raramente existiam comboios e eram raras as escoltas.
Com um mar mediterrâneo cercado pelas forças do Eixo, os aliados começaram a enviar pela rota do Cabo os reforços e os abastecimentos necessários para manterem o Egipto.
As distâncias impediam uma presença constante de submarinos e os cargueiros seguiam as suas rotas de forma mais descuidada. Mas tanto alemães como japoneses perceberam o que se estava a passar e destacaram flotilhas de submarinos, acompanhadas de submersíveis de abastecimento, para realizavam - duas a três vezes por ano - surtidas que devastavam a navegação aliada.
Centenas de homens chegaram a Moçambique, pelos seus próprios meios ou desembarcados por navios salvadores. Para além das unidades de guerra portuguesas também estiveram envolvidos em diversos resgates navios de comércio e de pesca portugueses e moçambicanos.
Estão nessa situação o norueguês HaiHing, os gregos Corinthiakos e Cleanthis, os britânicos Dorington Court, Aelybryn, Tinhow e City of Cantoon.
Entre o Atlântico e o Indico os portugueses arrancaram milhares de vidas ao mar.
São histórias quase esquecidas. Quase...
Carlos Guerreiro