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quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Um sonho chamado… Casablanca

No dia 7 de Junho de 1943 o mar estava picado e o vento forte. A noite anunciava o engrossar da tempestade. No pequeno “Carioca”, um barco de pesca aberto – com vela latina - e pouco mais de oito metros, o desespero crescia. Das nove pessoas a bordo apenas uma tinha alguma experiência de marinharia, mas também não fazia ideia de onde estavam.

Fizeram sinais a um avião com uma toalha branca, mas este pareceu não os ver. Há dois dias que o mar saltava a amurada baixa e se acumulava no fundo do casco. Da comida sobravam algum queijo e uns limões. A água doce estava no fim.


Maria da Encarnação, a única mulher a bordo, estava quase histérica quando foi recolhida pelo navio de guerra americano. 
(Foto: Naval War Diaries – NARA)


Eram cerca das nove da noite quando foram avistados pelo “USS MacCormick”, um navio de guerra americano do tipo “Destroyer”. O comandante Owens apercebeu-se do pequeno barco entre a ondulação e, conhecendo as dificuldades que se anunciavam, não teve dúvidas em recolhê-los.

Oito homens e uma mulher - quase histérica - subiram a bordo. Eram todos portugueses e tentavam chegar a Casablanca, em Marrocos, onde amigos garantiam que seria possível encontrar um trabalho.

“Todos os membros do grupo são residentes na área de Lisboa. Cada um deles assegurou que deixara Portugal porque não era elegível para trabalhar devido à sua relutância em juntar-se à Legião Portuguesa, uma alegada organização fascista”, escreveu o comandante do “MacCormick”, num relatório confidencial.

O pequeno barco, que ficou à mercê dos elementos, tinha sido comprado com o dinheiro de todos e preparado para uma viagem de 72 horas.

“Partiram de Lisboa no dia 4 de Junho de 1943. Planeavam descer a costa até ao Cabo de Sines, depois afastavam-se, passavam o Cabo de S. Vicente e voltariam a rumar para terra esperando chegar à costa de África, a Casablanca. No entanto, ao fim da tarde do dia 5, encontraram vento e mar fortes que os empurraram para sudoeste”, explica o comandante Owen.

Este grupo nunca chegaria a Casablanca, mas a cidade, imortalizada no filme com Humphrey Bogart, era um importante pólo de atracção para os portugueses que procuravam uma vida melhor. Do Algarve partiam anualmente homens e mulheres que durante alguns meses se envolviam em actividades fabris ou na pesca naquele território francês.


Retratos portugueses

Do interrogatório realizado ficou um retrato individual que permite conhecer não só as características físicas mas também o empenhamento político, crenças e esperanças de cada uma das pessoas salvas do “Carioca”.

João Rodrigues Sério, de 29 anos, deixara mulher em Lisboa. Pretendia chamá-la quando se estabelecesse em Casablanca. Segundo o comandante do “McCormick” declarou-se um “anti-fascista porque, aparentemente, associa os poderes fascistas às suas dificuldades económicas” .

Simplício da Encarnação e a mulher Maria eram o único casal a bordo. Não tinham filhos. Ele, com 40 anos, não tem convicções políticas, é “iletrado, e por isso uma fraca fonte de informações”. De Maria , dez anos mais jovem, ficamos a saber que tinha passado por uma fábrica têxtil e pouco mais.

Francisco Águas, de 33 anos, já tinha tentado emigrar. Escrevera para a embaixada britânica pedindo autorização para viajar, mas na resposta ficou a saber que o governo português não autorizava a sua saída.

José Vicente Leal, de 57 anos, deixara para trás a mulher e nove filhos. Também esperava juntar a família em Casablanca. Pouco interessado em “em filosofias políticas”, o comandante Owen escreveu ele explicara que “governo é comida para a barriga e um lar para a família”.

A mulher e os três filhos de Hermínio Albano, de 43 anos, também tinham ficado em Portugal. Após o salvamento mostrou-se entusiasmado com a possibilidade de trocar Marrocos pelos Estados Unidos.

António Gonçalves Rosa, de 28 anos, era divorciado, mas tinha deixado namorada em Lisboa. Não tinha ligações políticas mas já “havia sido ameaçado de prisão por utilizar um pin da RAF”.

Os dois últimos passageiros do “Carioca” conheciam os Estados Unidos e já lá tinham trabalhado.

Caetano de Almeida tinha-o feito durante 1941 e 1942. Após um regresso para ajudar a filha doente, tinha sido impedido de regressar pelas autoridades portuguesas. Era viúvo, mas encontrara uma nova mulher que, na altura da viagem, estava grávida. Com 43 anos assegurava não só que ia chamar a família a Casablanca, como também efectivar o casamento.

A personalidade mais “faladora” do grupo era José Rodrigues. Com 47 anos, já tinha conduzido táxis, trabalhado em fábricas e andara embarcado. Participara na I Guerra Mundial como sargento do exército português, e emigrara para Boston em 1919, para trabalhar numa fábrica de sapatos e numa refinaria de açúcar. Assumira mesmo a nacionalidade americana.

Rodrigues era “um forte antifascista, membro do que chama o Partido Republicano e um informador dos serviços secretos britânicos”, garante o relatório enviado pelo “McCormick”.


O grupo de portugueses a descer do “USS Tarazed”.
(Foto: Naval War Diaries – NARA)

Durante o interrogatório assumiu que já estivera detido por se envolver em acções de agitação política. No retrato que fez de Portugal reafirma as dificuldades em conseguir um trabalho remunerado, para quem não integrava a Legião. Por outro lado assegurava que existia grande empenho do governo de Salazar em recrutar voluntários para o “Regimento Azul” - uma unidade espanhola que combateu ao lado dos alemães na frente russa -, ou para emigrarem para a Alemanha.

“Tanto num caso como noutro o governo paga a viagem, e os membros da Azul Espanhola que voltem feridos recebem uma pensão do Governo”, refere no relatório.
A sua estada em Portugal ficava também a dever-se à proibição de saída imposta pelo regime luso após uma visita à irmã, em 1922.

Depois de caracterizar cada um dos seus “náufragos”, Owen concluí que eles “esperam ser bem-vindos à América tanto para trabalhar, como para serem recrutados para o exército”. Qualquer das soluções parecia agradar ao pequeno grupo.


O fim do sonho americano

Dez dias depois de terem sido recolhidos McCormick eram transferidos para o “USS Tarazed” que os deixa – a 24 de Junho - na Base Naval de Norfolk, na Virginia.

É durante o desembarque que são fotografados. Entregues à Cruz Vermelha Internacional, apresentam-se dois dias depois à comissão de imigração, que rejeita a entrada no país por não possuírem a documentação necessária.


Os portugueses na Base Naval de Norfolk, nos Estados Unidos da América. A vontade ficar não chegou, e a maioria foi repatriada. 
(Foto: Naval War Diaries – NARA)

Talvez porque tinha nacionalidade americana, ou porque fornecia informações aos aliados, José Rodrigues não vai regressar a Portugal. Os restantes são notícia – a 22 de Setembro - no “Diário de Lisboa”que dava conta da chegada de “oito dos nove indivíduos portugueses, que saíram há tempos, num pequeno bote, com o desejo de seguirem para Casablanca”.

“À chegada a Lisboa, foram entregues à Polícia Internacional, para ser resolvida a sua situação de tentativa de emigração clandestina. Depois serão ouvidos na Policia Marítima, acerca do caso do bote em que eles seguiam e que pertenciam ao sr. João Alves”.


Carlos Guerreiro

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