Mais tarde a chegada de dezenas de crianças judaicas, numa operação que tinha Lisboa como porta de saída para Inglaterra e para os Estados Unidos, viria a merecer outro destaque na imprensa nacional, mas nos primeiros anos a “invasão” de refugiados foi olhado como uma grande inconveniência.
Crianças refugiadas de passagem por Portugal em 1943.
(Século Ilustrado, edição de 24 de Abril 1943)
Uma das formas de contornar a censura passava por copiar artigos que tinham saído na imprensa internacional. Não se pense que esta era muito mais livre que a Portuguesa, pois os correspondentes estrangeiros também tinham de sujeitar os seus artigos às autoridades portuguesas antes destes serem enviados para os respectivos países.
Quem não o fizesse estava sujeito a ordem de expulsão, enquanto os jornais podiam ser proibidos de circular ou de manter outros correspondentes radicados, naquela que era uma das últimas portas para uma Europa continental cada vez mais fechada.
Portugal era por isso uma montra onde circulavam as mais recentes notícias e boatos oriundos dos países ocupados. Por vezes acontecia que esta censura aos correspondentes estrangeiros não era tão rigorosa como acontecia à imprensa caseira e esta tentava aproveitar-se disto.
No dia 2 de Abril de 1941 O Diário de Lisboa, puxava para a primeira página uma reportagem do “Daily Telegraph”. Por considerar que se trata de um interessante retrato do clima que se vivia em Lisboa, voltamos a fazê-lo 71 anos depois…
Lisboa saída de recurso para os refugiados da Europa
Subindo e descendo o pavimento empedrado do Chiado que é a “Bond Street” e o “Strand” de Lisboa, desde manhã até muito depois da meia-noite, vê-se a multidão mais cosmopolita que é possível encontrar em qualquer parte do mundo.
Se nos aproximamos dos grupos que passam podemos ouvir meia dúzia de línguas diferentes. Dezoito meses depois do deflagrar da guerra e oito após a derrota da França, os refugiados continuam ainda a chegar em números importantes.
Os estrangeiros que dispõem de fundos são objecto de vaga suspeita da parte dos seus companheiros, mas usualmente, seja qual for a nacionalidade dos indivíduos que despertam essas suspeitas, a explicação é simples: têm a felicidade de dispor de dinheiro na América.
Contudo, mesmo os mais afortunados vivem à margem de um futuro incerto. Ninguém sabe até quando pode durar a chegada de fundos.
Os Serviços de Repatriação de refugiados britânicos estão organizados com a maior ordem e eficiência. Os escritórios que tratam desse serviço em Lisboa são ocupados especialmente por empregados voluntários, os quais têm acudido e facilitado os meios de regressar à pátria a muitas centenas de ingleses aqui recém-chegados.
Mesmo agora, aqueles escritórios são frequentados por mais duma centena de refugiados mensalmente que ali vão pedir indicações sobre assuntos de dinheiro e para obterem passagens para Inglaterra.
Em França são os americanos que prestam o primeiro auxílio aos ingleses que regressam ao seu país. Dali é feita a comunicação para Lisboa, após a qual decorrem várias semanas até à entrada dos interessados em Portugal.
A entrada em Portugal
É na estação fronteiriça portuguesa de Marvão que os refugiados entram pela primeira vez, sob a protecção directa dos Serviços de Repatriação, os quais lhes oferecem uma recepção carinhosa e lhes facultam todo o auxílio possível. Muitas das pessoas que chegam aqui são pessoas ricas, mas temporariamente estão sem dinheiro algum.
Ricos e pobres sujeitam-se igualmente aos mesmos preceitos, visto que os fundos britânicos devem ser mantidos para objectivos mais importantes do que o interesse individual. Os Serviços de Repatriação impõem um limite de 10 libras esterlinas por mês para as despesas de cada refugiado enquanto aguarda passagem para a pátria, mas felizmente é possível viver com duas libras esterlinas por semana nas pensões modestas ou em casas particulares.
Além disso é também fornecido dinheiro àqueles que precisam adquirir vestuário ou às pessoas idosas ou enfermas. Ninguém ignora que refugiados que vêm de sofrer privações usuais em França preferem viver em Portugal, mesmo que seja apenas com 10 libras por mês, ao mesmo tempo que figuram na sua imaginação e abominam os bombardeamentos, o apagar de luzes e o racionamento na Grã-Bretanha, mas o governo não desmobiliza as suas divisas para que as pessoas troquem por outra, uma vida que se assemelha à da “Riviera”.
O único documento que pode garantir a autorização para uma mais longa permanência nesta agradável terra é um atestado médico. O abono de 10 Libras termina com a partida do navio para o qual o interessado tem bilhete de passagem. Outros governos estrangeiros têm igualmente os seus organismos para refugiados em Lisboa.
O organismo holandês fez seguir cerca de 200 refugiados do seu país para as Índias Orientais Neerlandesas, assim como alguns belgas seguiram para o Congo. Apesar destes drenos ainda se encontram aqui cerca de 1200 refugiados, na sua maior parte polacos, demorados em Portugal.
E embora Lisboa pareça toda cheia com estas idas e vindas duma população poliglota, verifica-se apenas uma pequena proporção no que diz respeito à enorme multidão de europeus sem asilo. Só em território da França não ocupada há cerca de 50 mil pessoas exiladas até ao fim da guerra.
Os refugiados em Lisboa são os felizes. Ainda que vivam da caridade ou a crédito estejam impossibilitados de exercer os seus ofícios ou profissões vivem, no entanto, debaixo do sol de um país livre.
E.T.
Um olhar do outro lado, sobre um Portugal que era um dos centros do mundo…
Carlos Guerreiro
Muito oportuno, tendo em vista a crise dos refugiados actual!
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