Festejos em Lisboa frente à Embaixada Inglesa. (Revista "Mundo Gráfico", 15 de Maio de 1945 /Hemeroteca de Lisboa) |
Mal a notícia da rendição se torna pública, na tarde do dia 7 de Maio, as ruas foram ocupadas nas cidades, vilas e aldeias de todo o país.
Há foguetes e “morteiradas”. Bandas e fanfarras saíram à rua por conta própria ou solicitadas por comissões formadas para liderar os festejos, algumas destas últimas sob forte suspeita do regime.
Não existe uma política comum a todo o país para controlar as diferentes manifestações. Em alguns concelhos tudo se autoriza, enquanto noutros, são colocados limites.
Em Portalegre, por exemplo, o presidente da câmara não autorizou saída da banda “por haver fundado receio de que o facto fosse aproveitado para exteriorização de ideias subversivas ou contrárias à actual situação política”.
De um modo geral, no dia 7, as festas são mais espontâneas, tem um carácter mais popular e prolongam-se pela noite com muitos “vivas” e “atrás dos vivas, começaram de notar-se as bebedeiras que se prolongaram pela noite fora.” Para o dia seguinte marca-se nova festa e manifestação, especialmente, nas localidades de maior dimensão e, neste caso, já se nota uma certa organização tanto por parte dos que celebravam como por parte das autoridades.
O medo da vitória aliada
O medo das consequências de uma derrota das forças fascistas da Europa são notórios em vários relatórios que foram chegando ao Ministério do Interior, especialmente, durante os anos de 1944 e 1945.
Festejos no Porto ("Jornal de Notícias", 8 de Maio de 1945 /Hemeroteca de Lisboa) |
“Depois dos últimos acontecimentos da guerra (a morte afrontosa de Mussolini e a tomada de Berlim pelas tropas Russas) notava-se em certos sectores, uma excessiva alegria, onde afloravam ódios mal contidos, rancores pessoais e esperanças de uma subversão política em Portugal”, explica o já mencionado relatório de Viseu e não é caso único.
“Os conhecidos agitadores do Entroncamento (…) andam de orelhas levantadas e bastante animados. Juntam-se em grupos discutindo os acontecimentos. (…) Os homens da Situação andam amedrontados e rendem finezas aos adversários. Diz-se que finda a guerra há modificação do Governo. Que os aliados impõem aos outros povos a forma de Governo (democracia)”, resume um outro relatório da PSP de Setembro de 1944.
No mesmo documento pode ainda ler-se que muitos responsáveis locais “estão aterrorizados, o que demonstra bem claramente, porque contando talvez com qualquer revês, pactuam com pessoas reconhecidamente adversárias da situação".
Com o aproximar do fim surgem cada dados cada vez mais alarmantes sobre uma potencial ameaça ao Estado Novo.
“Silvino Diogo (…) disse a alguém que possuía em sua casa uma “lista negra”, que lhe fora fornecida pelos americanos, na qual constam os nomes de pessoas da Situação e Legionários que haviam de ser abatidos”, revela um dos muitos relatórios dos Serviços de Vigilância da Legião Portuguesa de Lisboa, datado do dia 7 de Maio.
Portugal vibrou de emoção, diz a legenda desta fotografia. (Revista "Vida Mundial Ilustrada", 17 de Maio de 1945 /Hemeroteca de Lisboa) |
Noutra informação da Legião, com data de 5, é destacada a confiança de um certo Medeiros, que em pleno Salão Brasil, na Rua Augusta, em Lisboa, se permitiu “fazer várias afirmações vexatórias (…) comentando o facto da Bandeira Nacional estar a meia haste em sinal de luto pela morte de Hitler. Assim, em voz alta, dizendo não ter receio daquilo que lhe fizessem, insultou o senhor Presidente do Conselho, tratando-o de «filho da puta», bem como todos os componentes do exército e Legião”.
Somam-se os actos de desafio.
“Em Coimbra, na noite de 3 do corrente, foram deitados mais de 500 morteiros, com o fim de festejar a queda de Berlim. Supõem-se que tenham sido anti-situacionistas, os autores desta manifestação”, salienta um relatório da Legião enquanto outro dá nota da colocação da bandeira “vermelha com a foice e o martelo, no poste da 3ª secção da Junta de Autónoma de Estradas” de Queluz, na noite de 6 para 7, enquanto três dias depois o mesmo acontecia na Ponte de Rio Tinto, no Porto.
O "reviralho" sai à rua
É assim num país em clima de tensão que se chega à assinatura da rendição dos exércitos alemães. E se no dia 7 a maioria das manifestações teve, como já foi referido, um carácter mais popular e espontâneo, as iniciativas marcadas para o dia 8 assumem um outro nível de organização.
Não se vão registar problemas de maior, mas à frente das multidões que se juntam para ouvir discursos e para vitoriar os aliados surgem várias pesonalidades que o regime identifica como elementos do “reviralho”, “comunistas”, “democratas” ou de “ideias avançadas”.
Mesmo entre a população há medo … Em algumas zonas onde estavam marcadas concentrações para o fim do dia o comércio já não abriu as portas durante a tarde.
O olhos e os ouvidos das gentes da “situação” aguçam-se e de vários pontos do país chegam notícias. Nomeiam-se os cabecilhas, repisam-se os seus discursos, apontam-se os suspeitos mais perigosos.
“Alfredo Mendes da Silva, ex-aluno da faculdade de direito, foi quem chefiou a manifestação dos universitários, à Embaixadas Inglesa e Americana. Era este cavalheiro quem gritava «DEMOCRACIA» e «LIBERDADE», e pediu em frente da Embaixada Americana que fosse ajudada a academia para se obter em Portugal Liberdade e democracia. Este nojento individuo, sempre manifestou o seu ódio ao Estado Novo, e principalmente a Salazar. (…) Hoje, diz alto e bom som, que é russófilo”, assegura uma nota dos Serviços de Informações da Legião.
Numa outra pode ler-se que “o conhecido maestro comunista LOPES GRAÇA, e outros elementos desconhecidos foram vistos orientando várias manifestações de carácter subversivo, entre elas uma que pretendeu assaltar o Café Martinho”. Na Régua “salientaram-se, dando vivas à União Soviética e «morras» à Gestapo Portuguesa, o cauteleiro SOTERO, que apesar de analfabeto, sempre se tem mostrado hostil à situação; CLAUDINO CLEMENTE, empregado de armazém da Casa do Douro; MANUEL PAIXÃO, taberneiro; ANGELO MONTEIRO, mestre-de-obras”.
Festa em Lisboa . (Revista "Mundo Gráfico", 15 de Maio de 1945 /Hemeroteca de Lisboa) |
Para além de se apontarem nomes também se enumeram os desafios ao regime, mesmo quando não possível apontar culpados. No Crato não houve desordens, mas ouviram-se frequentemente, “vivas à Rússia e à Liberdade, percebendo-se o espírito tendencioso da parte das pessoas que os soltavam (…). É certo que concorreu para tanto, a generosidades de dois proprietários de estabelecimentos de bebidas que, na boa intenção de comemorarem o fausto acontecimento, ofereceram vinho ao povo”.
Em Campo Maior foi possível “ouvir vivas às nações vitoriosas, aos aliados, a Carmona e Salazar, Estados Unidos, Inglaterra e Brasil e, ainda um único viva à Rússia em voz débil que não foi possível identificar”.
Mas houve quem pagasse com a prisão o excesso de entusiasmo. Em Ponte de Sôr, o secretário da Câmara Municipal deteve um jovem de 19 anos, carpinteiro, por ter dado um viva à Rússia . Conduzido ao posto da GNR “esteve dois dias detido, e depois de repreendido, foi entregue ao pai e à mãe, sem qualquer procedimento, em virtude de se tratar de um menor”.
As manifestações do dia 8 foram ricas em discursos e outras iniciativas que se estenderam pelos principais espaços públicos do país. Pelos relatos percebe-se que na maior parte dos casos existe uma estrutura organizativa que nem sempre afronta de forma aberta a situação, mas deixa recados nas entrelinhas.
Marca-se nova concentração para o dia 9. Anunciam-se, nomeadamente, novas manifestações de agradecimento frente às embaixadas Americana e Inglesa em Lisboa. As estruturas da oposição passam este apelo para fora da capital, mas entretanto Salazar coloca um travão na animação e proíbe novas concentrações.
Isso não impede, no entanto, que de Almada parta um enorme grupo de pessoas com o objectivo de atravessar o rio. A GNR local mobiliza todos os efectivos disponíveis e dirige-se para Cacilhas de modo a evitar a travessia para Lisboa. Apesar da multidão, não se registam incidentes e as pessoas desmobilizam…
A força da rua continua, no entanto, a sentir-se e a União Nacional aproveita-a, marcando para o dia 19 de Maio, um Sábado, uma grande manifestação de agradecimento a Salazar por este ter conseguido manter Portugal fora da Guerra… Milhares de pessoas de todo o país chegam à capital para esta demonstração de unidade nacional, mas essa é outra história.
Carlos Guerreiro
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