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sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Lisboa, arte e guerra
Tortuosos caminhos para as Américas

Em 1944 o actor Errol Flynn comprou um Van Gogh por 48 mil dólares, um preço considerado exorbitante para a época. Seria um dos quadros que mais estimaria ao longo da sua vida. A pintura “O homem está no mar”, é baseado numa gravura chamada “Mulher com criança ao colo” que o artista holandês terá visto numa exposição em Paris. Foi uma das muitas pinturas que passaram por Lisboa durante a segunda guerra mundial.

O homem que transportou o quadro da Europa para a América, foi Paul Graupe, um refugiado que se estabeleceu, de forma provisória, em Lisboa a 1 de Janeiro de 1941, depois de um sinuoso percurso à frente das tropas nazis.

Para além de ser considerado um democrata, era também judeu, uma combinação pouco saudável na Europa dominada pelos nazis. Especialista nos velhos mestres da pintura foi obrigado a abandonar o seu negócio de leilões de arte em Berlim em 1936, quando os nazis fecharam o cerco aos comerciantes judeus.

(Foto: http://www.theerrolflynnblog.com/) 

Errol Flynn fotografado em sua casa com o quadro 
pintado por Van Gogh. 
"O Homem está no Mar" é um trabalho baseado numa gravura que o holandês terá visto em Paris. 


Estabeleceu-se em Paris e estendeu o seu negócio a Londres. Quando as tropas de Hitler invadem a França em 1940 encontra-se na Suíça e nada pode fazer para salvar as obras que mantinha na sua galeria no número 16 da Place Vendome. Foi tudo apreendido pelos alemães.

Outros quadros - entre eles o Van Gogh – estavam, no entanto, armazenados em nome de um britânico num outro armazém. O sócio de Graupe, Arthur Goldschmidt, conseguiu contrabandear oito quadros para fora de França através de um esquema, que envolveu um grupo de “gangsters” e muito dinheiro.

Para escapar aos alemães Goldschmidt, que também era judeu e também já fugira da Alemanha quando Hitler assumira o poder, foi instalar-se, com a mulher, em Cannes, na chamada zona livre.

Os “gangsters” tinham documentos que lhes permitiam circular livremente entre as zonas ocupada e livre da França, razão porque foram solicitados a traficar os quadros desde Paris até ao sul de França. Para além do Van Gogh trouxeram também dois Brouwer, um Cruyp, um Breughel, um Altdorfer, um Ostade e um Van Dyke.

Arthur conseguiu resgatar apenas quatro quadros, pagando por isso 85 mil francos. Os traficantes ameaçaram entregar as restantes telas aos alemães caso não fosse possível encontrar mais dinheiro.

As pinturas recuperadas foram enviadas para casa de uns amigos em Veneza, Itália, enquanto tentava encontrar uma forma de reunir dinheiro para recuperar as que faltavam. Quando os “gangsters voltaram Goldschmidt vendeu um dos quadros por 400 mil francos, que entregou ao grupo. Realizou capital para sair do país vendendo outra peça também por 400 mil francos, enquanto dois outros quadros ficavam na Suíça entregues a Hans Wendland, um outro negociador de arte com estranhas ligações ao esquema dos nazis.

Os quatro quadros que sobraram destes negócios – os Van Gogh, Breughel, Brouwer e Cuyp - foram contrabandeados até Bilbau onde ficaram aguardar a atribuição de passes de exportação para chegarem às mãos de Graupe.


Mundo de artes no porto de Lisboa

Pelo facto do filho estar a servir no exército britânico desde 1940, Graupe tinha estatuto de prioritário e conseguiu autorização para emigrar para os EUA em Março de 1941. Partiu, no entanto, sem os seus quadros.

As licenças de exportação só seriam passadas pelos britânicos em Maio de 1942, mas a burocracia iria arrastar a entrega das pinturas até Agosto desse ano.

Mas Graupe foi apenas um dos muitos galeristas e coleccionadores que passaram ou fizeram passar os seus tesouros artísticos por Lisboa em direcção a outros destinos. Num relatório da secção de negócios do Ministério dos Negócios Estrangeiros Britânico, elaborado em Abril de 1945 e onde se faz um balanço dos passes de exportação passadas durante os anos da guerra, Lisboa é referida dezena e meia de vezes.

Entre os que solicitaram passes de exportação encontram-se coleccionadores como Otto Gugenheim ou o galerista Andre Weill. Para os navios ancorados em Lisboa desfilaram pinturas de Brueghel, Corot, Degas ou Van de Velde.

Duas destas “exportações” autorizadas a partir de Lisboa, e para os EUA, assumem importância pela sua dimensão e história.

Mais de 500 quadros foram embarcados no navio americano S.S. Excalibur. Pertenciam à famosa colecção Vollard e incluíam quase três centenas de pinturas e desenhos de Renoir, dezenas de telas de Cezanne, Gaugin, Degas, Picasso, Manet, Corot, Guys, entre outros.

A licença de exportação foi passada em nome de Martin Fabiani, mas suspeitas sobre as suas ligação aos nazis e sobre a propriedade das obras levaram os britânicos a apreender a carga. O “Aterrem em Portugal!” desenvolve este tema no artigo "O Excalibur e o senhor Fabiani".

Em Maio de 1944 centenas de peças de porcelana, pratas, bronzes e pedra seguiram para Nova Iorque em nome do antiquário judeu Leopold Blumka. De origem austríaca também ele tinha passado por Lisboa como refugiado em 1941, depois de se ter tentado fixar na Suíça sem sucesso.


Guerra de divisas

Com a atribuição de passes de exportação os britânicos queriam evitar que os países do Eixo realizassem lucros, vendendo bens artísticos em/ou através de países neutrais.

A política cultural dos nazis, cuja gestão foi entregue ao Reichsleiter Rosenberg e à sua unidade especial, passou pela pilhagem de colecções particulares e públicas em todos os países ocupados. Esta unidade estava também encarregada de fazer desaparecer toda a arte de origem judaica ou “degenerada”, onde se incluíam praticamente todas as correntes da arte moderna.

Para amealhar divisas, necessárias à economia alemã, estas peças não eram destruídas, mas entregues a comerciantes da confiança do regime que se encarregavam de as vender, através de uma rede que se estendia pelo mundo. A América neutra, rica e isolacionista, surgia como um mercado natural para as peças e o mesmo acontecia com alguns países da América do Sul.

A política de passes ou certificados de exportação (navicerts) surgiu com o objectivo evitar aquele tipo de transacções. As autorizações só eram concedidas depois dos portadores provarem, por exemplo a proveniência dos objectos e a data das aquisições. As regras impunham ainda que as obras não poderiam ter sido compradas após o início da guerra.

Apenas quando se tratavam de refugiados as restrições eram aligeiradas.

A partir de 1941 as autoridades inglesas passaram também a exigir o envio de fotografias de peças que eram levadas para análise a Kenneth Clark , um dos maiores historiadores de arte do Reino Unido.

Foi com base nestas directivas que vários galeristas, coleccionadores e refugiados fizeram sair os seus pertences através de portos portugueses, espanhóis e suíços, mas o problema eram as exportações ilegais e o que se poderia esconder entre as autorizações.

Os britânicos reconhecem que “não têm a certeza” de que entre as autorizações não existissem objectos pilhados. Investigações posteriores levadas a cabo nos EUA revelam a existência de um elevado número de negócios suspeitos e elaborados esquemas para realizar os transportes.

Em Novembro de 1943, por exemplo, uma empresa suíça de transportes informava uma congénere americana de que não era possível “o quadro seguir por correio aéreo para Lisboa”, sugerindo a utilização do caminho-de-ferro numa viagem que demorava “cerca de quatro semanas”. Seria ainda “possível enviar o quadro para Marselha e deste porto, num navio suíço, para Filadélfia através de Lisboa”. A informação surge no relatório de uma investigação dos serviços de censura postal, mas não é especificado de que quadro se falava.

A Suíça surge com frequência como um país central na intrincada rede de negócios que foi estabelecida pelos negociantes envolvidos na compra e venda de arte pilhada. Os ramos estendem-se depois por Espanha, Portugal, América do Sul e Estados Unidos.

Entre as investigações de diversas redes de “traficantes surge, por exemplo, o nome de Blumka. O alarme foi dado, mais um vez pelos serviços postais, que interceptaram a carta de um tal de Friedrich Stirnemann, que na Suíça teria quadros de Rubens para enviar à consignação. Nunca se provará que o envio foi realizado ou que Blumka estivesse envolvido no tráfico de obras de arte.

Embrulhado nesta rede de traficantes surge, ainda com maior frequência, o nome de Paul Graupe. São consideradas extremamente suspeitas as suas ligações a Hans Wendland, o tal negociante que viver na Suíça e, apesar de ser judeu, é apontado como tendo ligações privilegiadas com os nazis. Um memorando americano assegura que terá recebido, de uma das vezes, várias carruagens de comboio cheias de quadros directamente de Paris.

Entre a correspondência trocada por Graupe e Wendland falam-se de negócios, de transferência de obras da Europa para os EUA e de formas de disfarçar as transacções.

Graupe cortará relações com Wendland e até com Goldschmidt, com a colocação se processos judiciais mútuos relacionados com comissões e sociedades em pinturas.

Será também suspeito devido às suas relações com outros negociantes – refugiados - a residir na América do Sul. Apesar de todas estas investigações, os americanos nada conseguem provar contra Graupe, que se tornará cidadão americano depois da guerra.

Curiosamente o sinal de alarme para estas investigações foi dado pela venda do Van Gogh que passou por Portugal em 1941. O FBI teve dúvidas sobre a data da sua aquisição e não encontrou provas de que o tivesse adquirido antes da Guerra. Graupe afirmava que o tinha comprado em 1939 a um bem conhecido coleccionador chamado Paul Gachet.

Apesar do sinuoso caminho a obra tem vindo a valorizar-se a uma velocidade vertiginosa. Graupe vendeu-o a Caesar Diorio, um comerciante de Nova Iorque, em Julho de 1943. Sobre a mesa foram colocados 32 mil dólares. Flynn comprou-o por 48 mil e tê-lo-à vendido anos mais tarde por cerca de 120 mil dólares.

Após passar por mais algumas mãos e, no princípio deste mês de Fevereiro, “O homem está no mar” foi arrematado no Sotheby’s por pouco mais de… 20 milhões de Euros.

Carlos Guerreiro

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