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sexta-feira, 29 de abril de 2016

Casa onde não há pão...

Alarmados e temendo que se registassem desacatos no interior das lojas os comerciantes fecharam as portas e ficaram à espera do pior. Desde as sete da manhã que a população de Albufeira - na maior parte marítimos e agricultores – estavam na rua em protesto contra a falta de pão.

Senhas de racionamento de pão

A 4 de Abril de 1944 os populares daquela vila algarvia contestaram uma decisão tomada pelas autoridades no dia anterior. O atraso na chegada de um carregamento de farinha e o esgotar das reservas do concelho levaram a Comissão Reguladora do Comércio Local a determinar que os 200 gramas de pão por pessoa, distribuídos normalmente para um dia, se tivessem de desdobrar para dois. Foi ainda decidido retirar das cadernetas de racionamento as senhas correspondentes aos dias 3 e 4.

A agitação só diminuiu quando chegou um destacamento da PSP liderado pelo comandante distrital que fora avisado às primeiras horas da manhã. Após a chegada desta força foi ordenada a abertura das lojas e quando a polícia verificou que ainda existia arroz, açúcar, bacalhau e massas do contingente de racionamento do mês anterior, os produtos foram colocados à venda mediante a apresentação de senhas de racionamento.

Com a farinha que restava fez-se também algum pão que foi distribuído – mais uma vez contra a entrega de senhas – por volta das 17 horas.

A população acalmou-se, realizou as “compras ordeiramente, começando depois a dispersar em boa ordem”. Nessa mesma noite chegou de comboio o carregamento de farinha prometido pela Sociedade Industrial do Vouga, com sede em Garvão, e a situação normalizou-se.

Desde Março de 1943 que o país vivia sob um sistema de racionamento, mas a falta de abastecimentos – por escassez real, desorganização, incompetência, açambarcamento ou roubo – trouxe muitas dores de cabeça às autoridades locais e foram várias as manifestações que tomaram forma por todo o país.

Só no Algarve, e na mesma altura em que se assistia à contestação em Albufeira, também Paderne, Castro Marim e Alcoutim viram a sua população “amotinar-se” em protesto contra a falta de pão. Um relatório da PSP da época refere que “têm sido distribuídos outros produtos como sejam farinha de milho e figos, com o agrado da população”. Há ainda a esperança de que o mês de Maio traga melhores notícias “com a nova colheita de batata e maior abundância de pesca”.

Também no primeiro trimestre de 1944 há notícias de sublevações nos distritos de Beja e Bragança. No primeiro a população, especialmente as mulheres, tentaram impedir que o trigo dos celeiros locais fosse transportado para fora e só a intervenção da GNR permitiu a realização da operação sem problemas.

Salienta também um relatório da PSP que apareceram ainda “uns dizeres escritos na parede, em um ou dois pontos de freguesias, não deste concelho mas de outros, em que se lia que «já não comemos trigo, os outros também não o hão de comer»". A polícia acreditava que se tratava da “da manobra de algum alucinado inimigo da Situação, que quer fazer crer que a falta de trigo do nosso país é motivado por o mandarem para fora”.

Em Bragança o motim teve contornos mais delicados. Na manhã de 19 de Abril um numeroso grupo de mulheres e crianças dirigiram-se em “manifestação de descontentamento” para o hotel onde se encontrava hospedado o Governador Civil do distrito. A manifestação tinha com objectivo exigir que fossem atenuadas as faltas de pão que se sentiam. Nessa manhã a população recusara-se a receber os 250 gramas de pão que cabiam a cada um. Também aqui a escassez de farinha tinha levado as autoridades a ordenar a redução das rações e os populares, especialmente os mais pobres, tinham-se revoltado.

Depois de alguma tensão o pão foi distribuído durante a tarde quando os populares “reconhecerem a inutilidade do seu propósito”. Um “reconhecimento” que também estará relacionado com as prisões feitas pela PSP e pela PVDE após “alguns excessos”. Prosseguiam as investigações pois acreditava-se na hipótese de que “outros elementos ocultamente, para esta ocorrência tenham contribuído com a sua acção agitadora, o que ainda não foi confirmado”.

Quando o sistema de racionamento de pão foi implementado em Coimbra, em Março de 1944, também foram realizadas diversas prisões o que contribuiu para que “pouco a pouco a situação se fosse normalizando”.


Uma longa lista de produtos em falta

Para além do pão a escassez produtos estendem-se à batata, à carne, ao toucinho, ao azeite e todo o tipo de bens de primeira necessidade. E não são só os produtos alimentares a sofrer racionamento.

As faltas no distrito de Beja são tamanhas que em 14 de Janeiro de 1941 o comandante local da PSP, capitão Aníbal Duarte Soares escreve para Lisboa um carta longa e corajosa que chega à mãos do Ministro do Interior.

Nessa missiva é feito um apanhado dos problemas de abastecimento e desenrolada uma longa lista de críticas.

"Um aspecto do recenseamento populacional da freguesia de Santo Ildefonso"
 Fotolegenda do Jornal de Notícias de 19 de Agosto de 1943.

No distrito falta, por exemplo, a batata “que super abunda no Norte” estando a ser “empregada na alimentação de suínos”, enquanto a sul “o precioso tubérculo não aparece, fazendo quasi tanta falta como o pão”.

A sua escassez traz “enormes transtornos a tantos milhares de famílias”. O oficial não se fica apenas pela constatação da falta de batata e dá exemplos de como isso é resultado de um mau funcionamento do sistema. “Há cerca de mês e meio, com a devida antecedência para o fornecimento da batata não sofrer interrupção, que sua Exª o Governador Civil tem instado persistente e energicamente perante a Junta Nacional de Frutas, para esta autorizar a saída de batata dos grandes armazéns de Guarda-Gare, requisitada e paga pelos armazenistas de Beja. A referida Junta promete que vai autorizar imediatamente; contudo o fornecedor continua a escrever ao seu armazenista: a batata não segue por falta de autorização da Junta”.

Outro produto que falta é o carvão de sobro. Dos 40 vagões de comboio prometidos apenas 25 tinham chegado, porque a CP resolvera interromper o transporte: “É de esperar que dentro em breve, uma multidão de milhares de criaturas venha em massa tumultuosamente, quasi desvairada recorrer às autoridades e clamando com justiça que não podem confeccionar o seu já desfalcado alimento, por falta absoluta de carvão. (…) Certamente a autoridade não lhe responderá com meios violentos. Seria tremenda injustiça usá-los e porventura operar contra a doutrina do Estado Novo, doutrina Cristã, doutrina de bem-fazer”.

As críticas chegam especialmente à CP que “não se tem esforçado como lhe cumpria para corresponder, ainda que minimamente, às vantagens imensas que obteve do Estado Novo. Nunca a CP através da sua longa existência auferiu tão fabulosos lucros. E também não há memória de nunca ter servido tão mal o país”.

O oficial da PSP acrescenta ainda as “complicações burocráticas, cada vez mais emaranhadas” das quais também não se coíbe de dar exemplos: “Chega por exemplo, um vagão de sabão para Beja, com 300 caixas. Destas, competem seguir 100 para Serpa – onde por falta de sabão, três quartos da população está içada de piolhos. Pois para o sabão seguir de Beja para Serpa, é necessário pedir autorização para Lisboa – que demora mais uma semana a conseguir-se. É mais um longo compasso de espera e maior aumento de impaciências e mal-estar”.

O capitão Francisco Soares não te dúvidas de que “é fácil concluir que além do mal-estar proveniente do exterior e oriundo da Guerra actual, existe também o mal-estar de ordem interna, provenientes do açambarcamento, especulação, más vontades e burocracia”, o que contribuí “eficaz e persistentemente para o descontentamento geral, óptimo campo que o adversário – sempre alerta – não deixará de aproveitar para o desenvolvimento da sua campanha embora surda e cautelosa, mas sempre subversiva e dissolvente”.


As marchas da fome

Os problemas de abastecimento não são exclusivos das chamadas “províncias”. Em Lisboa e arredores foram vários os momentos em que as autoridades foram obrigadas a intervir após movimentações sociais resultantes da falta de géneros. Para a história ficariam, no entanto, as greves e acções de 8 e 9 de Maio de 1944 lideradas pelo PCP e que tiveram como lema “pelo pão e pelos géneros”. A acção teve forte impacto na capital e no Alentejo. Milhares participaram nas chamadas “marchas da fome” e as autoridades prenderam centenas de pessoas, mas em resultado destas acções as autoridades viram-se obrigados a aumentar a quantidade de pão entregue através do sistema de racionamento.

Noticiário diverso sobre o racionamento de 1943.

O Porto também não fugiu a estes problemas. Logo em 1940 as autoridades desenhavam um quadro negro da situação social que se agravava de “dia para dia, manifestando o aumento da mendicidade, de prostituição e de roubo, e sendo aproveitado o ambiente por elementos profissionais da desordem”.

“Junto à passagem de nível no caminho para o norte, bandos de indivíduos impedem a marcha dos automóveis obrigando-os a parar pondo-se em frente aos veículos, e exigem esmola aos gritos de «Temos fome, temos direito à vida»", descreve um relatório da polícia.

Nos anos seguintes a situação agravou-se como é possível perceber pelas informações que chegavam ao Ministério do Interior em Lisboa: “O carvão, o sabão, o azeite, o óleo de mendobi, as gorduras em geral, escasseiam originando bichas às portas dos poucos estabelecimentos que vendem estes géneros. Tem-se notado irritação nos componentes das bichas, principalmente no azeite, e uma certa tendência para a invasão e assalto, o que se tem evitado tendo porém que se recorrer a meios bastante enérgicos. Os componentes das bichas são mulheres na quasi totalidade o que torna os casos difíceis, mas terão que ser resolvidos à força as tentativas de assaltos que a realizarem-se seriam um mau precedente”.

Carlos Guerreiro

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