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sexta-feira, 26 de agosto de 2016

Dora, o navio do inferno

Sabe V. EXª o que de vergonhoso se está passando à volta dos desgraçados refugiados do vapor Dora?

Se não sabe é conveniente que V. Exª se informe directamente e termine, de vez, com, um espectáculo que está envergonhando e desprestigiando o nosso país aos olhos de estranhos.

À volta desses infelizes, cujos únicos crimes são os de alguns serem ricos e todos judeus, tem-se agitado um bando de abutres. É que alguns deles ainda têm consigo uns milhares de dólares escapados à rapina.

Esse bando, em que já se inscreveram entidades de certo relevo e responsabilidades sociais, só largará aqueles infelizes velhos, mulheres e crianças quando estes, já exaustos, nada mais tenham para ser roubado.

Porque não se deixa partir aquela gente? Porque se levantam mil e uma dificuldades à legalização da sua situação? Porque prendem e não deixam em liberdade tratar da regularização dos seus papeis para poderes deixar o país? Porque isso convém ao bando que não se farta só com as grossas somas que já lhe extorquiu.

(…)

Snr. Presidente do Conselho:

(…) é indispensável que V. Exª intervenha imediatamente e varra do povoado a alcateia de lobos que farejam a presa inofensiva e indefesa.

Feito isto, terá V. Exª prestado mais um altíssimo serviço em prol do prestígio da nossa terra.

Um Português


O Navio Dora
(Foto: Dodenschip Dora)
Datada de 12 de Agosto de 1940 esta carta anónima, enviada a Oliveira Salazar, denuncia um dos muitos dramas que no Verão de 1940 tiveram lugar às portas de Lisboa, numa altura em que Milhares de refugiados viram na capital portuguesa o refúgio momentâneo para uma Europa que mergulhava definitivamente na guerra.

O Dora era um pequeno cargueiro com bandeira panamiana, propriedade de um armador grego, e que desde 1939 estava envolvido no transporte ilegal de Judeus da Europa para a Palestina e outros destinos no norte de África. Foi com o objectivo de chegar a Casablanca que, no dia 2 de Julho de 1940 saiu do porto de Cette, perto de Bordéus, onde fora fretado à pressa por um grupo de meia centena de refugiados que queriam fugir às tropas de Hitler.

Graças aos inesperados da guerra a viagem iria ser mais curta. Na rota do Dora agigantou-se o combate de morte entre as frotas inglesa e francesa. A 3 de Julho os britânicos atacaram os navios franceses amarados no porto de Mers-el-Kébir, no Norte de África, e destruíram a frota. Uma ação executada por ordem directa de Churchill que temia que os alemães se apropriassem dos vasos de guerra e ganhassem força no mar. Morreram cerca de 1300 marinheiros franceses e 300 outros ficaram feridos.

A tensão no mediterrâneo disparava e a rota do pequeno Dora passava pelo meio da contenda e foi tomada a decisão de não fazer esse caminho. Pouco depois de terem partido de França entravam no porto de Lisboa, onde as autoridades proibiram o desembarque dos 46 passageiros, enquanto estes não conseguissem vistos para prosseguir viagem para outros destinos.

Entre os refugiados encontravam-se os banqueiros Haim Bernstein com dez familiares, o banqueiro polaco Sokolow e outros refugiados vindos de países como a Holanda, a Bélgica e a França. A bordo encontravam-se uma criança de 3 meses, doze com menos de sete anos e 14 mulheres.


Um Inferno

Conforme as semanas passaram armador e passageiros acabaram a digladiar-se, com versões contraditórias, nos jornais portugueses e estrangeiros. Estes últimos depressa rebaptizaram o Dora de “Hell Ship”, o navio do Inferno.

Segundo o relato feita pelos passageiros a decisão de desviar a rota para Lisboa foi feita pelo comandante que temia pelo futuro do navio. Um banqueiro de nome Berenszteyn - talvez Bernstein como surge em alguma imprensa estrangeira- disse ao “Diário de Lisboa” que o desespero levou as 46 pessoas a pagar cerca de um milhão de francos franceses para escapar de França. Um valor elevado que iria ser reforçado mais tarde.

Primeiro o comandante terá exigido mais cinco mil francos ao banqueiro para assegurar que o navio se dirigiria a Lisboa e não outro qualquer porto. Já na capital portuguesa – e perante a demora na chegada dos vistos - voltariam a ser feitas exigências: mais 1150 dólares e a partir de 28 de Junho a extorsão agravou-se com a exigência de uma diária de 150 dólares por passageiro.

Na reportagem do jornal português as condições em que viviam os refugiados é classificada como sendo “pior que numa antiga terceira classe de emigrantes”: “Como ali não há sala de jantar os passageiros vêem-se na necessidade de comer sentados no chão (…). Todos trazem o seu talher na algibeira e, apesar de já terem partido há mais de um mês de Cette, conservam ainda os mesmos vestuários”.

Dias depois seria a vez do capitão e do armador do Dora relatarem a sua versão dos acontecimentos. O “capitão Fostinis” e o “senhor Atychidés” asseguraram que a mudança de rota aconteceu a pedido dos passageiros e que as exigência monetárias posteriores tiveram apenas a ver com despesas normais de um frete que se prolongava para além do tempo combinado.

Duas versões contraditórias que encontraram também lugar na imprensa estrangeira. A primeira mereceu especial atenção nos jornais da comunidade judaica que considerava o capitão do navio um “gangster”.


Um refúgio em Caxias

O caso do Dora também foi seguido de perto pela PVDE e pelo comandante do porto de Lisboa. A situação das 46 pessoas degradava-se de forma assinalável e por razões humanitárias as autoridades portuguesas autorizaram o internamento numa casa de saúde de uma criança – filha do banqueiro Bernstein – e uma outra passageira foi autorizada a ter uma consulta de odontologia.

Jornal "The Jewish Post", de 9 de Agosto de 1940.

Na primeira semana de Agosto a situação a bordo tornava-se insustentável. Após forte pressão de agências de apoio aos judeus refugiados, e com o processo para a obtenção de vistos a prolongar-se foi tomada a decisão de permitir a saída dos passageiros, mas estes teriam de ficar “internados” no forte de Caxias até que se desenrolasse o emaranhado da burocracia. Passageiros, bagagens e até alguns carros abandonaram finalmente o navio depois de cerca de um mês fechados num casco de metal.

Contam jornais estrangeiros que alguns marinheiros portugueses presentes no desembarque não esconderam as lágrimas quando viram o estado em que as pessoas se encontravam, especialmente as crianças.

O comité de apoio aos refugiados prometeu processar o capitão e o armador pela forma desumana como tratou os passageiros.

É após essa decisão que a carta anónima é enviada para Oliveira Salazar. Tudo indica que este a reencaminhou para a Polícia de Vigilância e Defesa do Estado, a antecessora da PIDE, responsável pelo controlo de estrangeiros.

A resposta às acusações é feita na própria carta em diversas linhas manuscritas. A assinatura é ilegível, mas certamente será de algum responsável da polícia. Assegura-se que as acusações são falsas e que o internamento em Caxias teve com objectivo proteger os refugiados e "evitar as especulações que com eles se estavam fazendo".

Vários passageiros conseguiram nos dias seguintes vistos para Shangai ou para a Austrália, mas com as voltas que a guerra deu não é fácil perceber onde terminou a viagem destas 46 pessoas.

Carlos Guerreiro

1 comentário:

  1. Estas informações deviam ser amplamente divulgadas nos tempos que correm.
    Delas deviam ter conhecimento os anti-semitas que por aí polulam, os defensores dos extremistas muçulmanos, os pseudo-pacifistas que dizem que a violência não se combate com guerra e todos aqueles que querem enterrar uma sociedade construída com o sacrifício dos que lutaram contra o nazismo na Segunda Guerra Mundial!

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