Nesta trecho é descrita a vida em Dachau e a libertação do campo pelos americanos...
Espero que o trabalho em transcrever estas longas páginas de jornal sejam úteis.
Recomeça aqui a transcrição:
Seis homens numa cama com 70 centímetros de largura
“Eu vou com alguns dos meus companheiros, de França, para o
Block-21. O recinto ocupa uns mil metros quadrados. Ficámos ali a viver 1200
homens que, durante a noite, deveriam dormir numa barraca que mal comportava
300. Quando nos cabia a vez de adormecer sob o telhado da barraca, a coisa não
era fácil, pois as camas, de madeira, sobrepostas em três compartimentos, só
tinham 70 centímetros de largo para seis homens cada.
O que nos valeu foi que a fome nos havia feito emagrecer
muito…”
- Como era o regime dos prisioneiros em Dachau?
- De manhã, às 4 e meia, eramos obrigados a levantar-nos e a
sair para o pátio onde permanecíamos todo o dia até às 7 da tarde, qualquer que
fosse o tempo cá fora. No Inverno, o sofrimento foi doloroso. Com a chuva, a
neve e o frio e sem nos podermos abrigar «, só nos restava um recurso:
apertar-nos uns de encontro aos outros, como um rebanho de carneiros e ficarmos
para ali a procurar não deixar fugir o calor que cada um de nós pudesse
armazenar e ceder ao outro. Sem roupa que chegasse e sem calçado, com uma
temperatura de 24 graus abaixo de zero, muitos caiam sem sentidos e, assim iam
morrendo. Outros, com os pés gelados e gangrenados, eram levados ao hospital ou
metidos como coisa inútil no forno crematório e queimados vivos. O espectáculo
começou a ser tão vulgar que cada um de nós esperava a entrada no forno como o
fim lógico daquela vida ilógica. Durante o dia, para romper a monotonia daquela
vida miserável e para que os guardas não se aborrecessem, faziam-nos formar e
conservar horas seguidas na posição de sentido para ver a nossa resistência e
separar os que deviam partir para os trabalhos nos “comandos” e os que, por
serem fracos, iam acabar na câmara dos gases, mortos por asfixia e intoxicação.
A voz do meu companheiro de Paris volta a ter um som cavo, e
a sumir-se como se as próprias palavras lhe causassem pavor:
- Quando se fazia esta escolha – a “visita” como nós lhe
chamávamos – o silêncio era profundo, doloroso. Cada um de nós pensava consigo:
“Será agora a minha vez? Os mais animosos despediam-se dos camaradas antes de
serem levados para a câmara de gases e abriam a boca num sorriso em que ia todo
o seu desprezo pelos “nazis”, aniquiladores de uma raça, de uma civilização, de
um continente.
Outros tinham um grito pueril: “Os americanos hão-de
vingar-nos!”
Os alemães sabiam do avanço aliado em terras da França e da
própria Alemanha – e não perdoavam. E muitos dos condenados eram mortos ali
mesmo a tiro. Menos gás que se gastava na câmara…
Atacado de tifo e não tratado
Depois de ter escapado em várias “visitas”, acabei por ser
incorporado num transporte com destino a Hamburgo. Mas não cheguei a ir.
Atacado de tifo, estive nove dias com 40 graus de febre. Os meus companheiros,
condoídos, amontoavam-se nas outras camas para me deixarem só com mais dois no
meu leito. Mas ninguém podia tratar-me. E os médicos do campo tinham mais que
fazer, ocupados em averiguar até que ponto resistiam aos bacilos do cólera e do
paludismo alguns dos internados no campo transformados em cobaias. Depois dos
nove dias, começo a sofrer de disenteria. Os camaradas chamaram os guardas. O
meu estado já não deixava ilusões a ninguém. Sou então dado como “kaput” e
levado para o “block 30” – o dos condenados a desaparecer, pela fome ou pela
doença.
Aí, a lotação era de 1200 homens e já não havia camas.
Tíficos, tuberculosos, grípicos, estavam, lado a lado no chão da barraca
carpindo as suas dores, delirando nos seus sonhos de febre alta. Morriam, em
média, 40 por dia. De manhã os cadáveres eram levados para a casa de lavar (a
indiferença com que nós os afastávamos do caminho quando íamos passar um pouco
de água na cara e nas mãos!) Depois um carro vinha buscá-los descarnados,
amontoados uns sobre os outros, nus (porque o seu fato ia logo servir a outros
que entrassem de novo!).
Nunca mais poderei esquecer esse carro fantasma! Quantas
vezes, ao vê-lo passar, eu cheio de febre, de dores, de fome, de sede pensava
para comigo próprio: “Que mal terei eu feito ao mundo, a este homens? Porque
não morro sem mais sofrimentos? Para que resisto? E porque não terei eu direito
a viver feliz? Quem semearia urtigas no meu caminho? Quem? Depois, caía, -
abatido. Mas sem sabe como, aguentei-me. E, apesar dos meus 39 quilos de peso,
a febre ia passando, diminuído dia a dia.
Comecei a comer (nunca fui tratado do tifo ou da disenteria
com medo de morrer de fome. De resto a comida não era tanta que matasse: de
manhã uma beberagem a que podia chamara-se chá ou café conforme o gosto; ao
meio dia, um litro de água quente com um pouco de beterraba; às 7 da tarde, 150
gramas de pão, uma rodela de salsicha e meio litro de infusão de ervas, sem
açúcar.
A flagelação e a agressão
- Como explica a sua resistência à doença?
- Sabe-se lá! Quando voltei a Paris, um médico disse-me que
tinha esgotado todas as minhas reservas. E que me valera não ter sofrido
qualquer castigo grave durante o tempo que estive em Dachau. Se isso tivesse
acontecido, não resistiria à perda de mais reservas do organismo. E o meu
castigo foi só estar nu e em pé um dia inteiro no pátio porque aparecera um
piolho na minha cama…
- Mas de que sorte eram os outros castigos?
- O mais frequente era o da flagelação. O castigado
deitava-se sobre um pequeno carrinho de jardim, de joelhos, com as mãos atadas
à roda. Dois guardas, munidos de nervos de boi, aplicavam-lhe então, alternadamente,
nas costas e nas nádegas, o número de vergastadas que lhe fora atribuído, nunca
inferior a 25. Vi um homem que ficou com os ossos à superfície, após ter
recebido 300 vergastadas. E quando o supliciado soltava um grito, os golpes
dados não eram tidos em conta e a contagem começava de novo. Felizmente, nunca
recebi qualquer castigo destes. Fui agredido várias vezes a soco e a pontapés,
feriram-me com um pau na cabeça, partiram-me os óculos por duas vezes. Foi
tudo. Mas os outros… Quantas vítimas dos “nazis”! O forno crematório ardia
constantemente. E na sala de banhos havia barras de madeira para os
enforcamentos…
- Quais foram os factos que mais o impressionaram durante a
sua estadia em Dachau?
O Homem que morreu quando quis
-É difícil. Foram tantos… Mas sabe, depois, a sensibilidade
embota-se, já não temos cérebro, nem coração. Andamos, falamos, gritamos ao
acaso… Autómatos, enfim. O que mais me impressionou? A morte daquele professor
de francês que era meu companheiro de “blok”. Não merece a pena dizer o nome.
Um dia, dia nevoento e chuvoso, arrastou-se até junto de mim e mais dois
companheiros. Queixou-se amargamente da sua sorte. Depois, encolheu os ombros e
disse: “também não vale a pena incomodar-me: isto está por pouco”… Olhou-nos
bem de frente com os seus olhos ingénuos, transparentes… E disse-nos adeus.
Soubemos depois, duas horas mais tarde, o que acontecera. Saíra de junto de
nós, fora à casa de lavar, afastara os cadáveres que estavam no chão,
despira-se todo, deitara-se na laje fria. Cinco minutos depois estava morto.
“Aquele soubera vingar-se dos alemães. Eles não o mataram.
Foi ele, foi ele que morreu quando quis…”
O outro facto mais impressionante, foi – como não podia
deixar de ser – a chegada dos americanos a Dachau. Eu já não tinha esperanças
de os ver… Mas um dia, os guardas começaram a fugir, a ser amáveis…
Desconfiámos. A câmara de gases estava cheia. Eles bem queriam limpá-la. Mas
não tiveram tempo. Quando um companheiro me veio dizer que os americanos
estavam já no campo, desatámos os dois a rir às gargalhadas, como doidos. Depois,
pedi-lhe ajuda. Levantei-me. Queria ir vê-los. Os meus 39 quilos não aguentavam
a caminhada. Levei duas horas da minha barraca ao largo central do campo. Mas
cheguei – e ainda tive forças para responder às perguntas:
- O seu nome?
- José Agostinho das Neves, natural de Lisboa… Residia em
Paris…
Caí no chão, exausto a chorar e a rir… Voltara do Outro
Mundo.
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