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quinta-feira, 17 de abril de 2014

O caso do Santa Irene

Foram disparados cerca de quinze obuses à queima-roupa que não deram qualquer hipótese ao Santa Irene ou à sua tripulação. O cargueiro português incendiou-se e afundou-se de popa levando consigo as vidas de 17 tripulantes e um passageiro.


Minutos antes António Henriques Troia, que terminara o seu quarto, apercebera-se de uma embarcação a bombordo. Apesar da escuridão, pois já passava da meia-noite, tanto ele como alguns outros identificaram esse navio, que se aproximava de través, como sendo um submarino.

Os tiros de canhão começaram pouco depois, sem qualquer aviso. Era impossível não atingir o Santa Irene. Estava muito próximo e completamente iluminado, mostrando de forma bem visível parte do convés, as cabinas, o nome do navio pintado junto da chaminé, a bandeira e o nome de Portugal pintados no casco.

Após os primeiros disparos António Troia saltou para uma baleeira, com outros quatro homens, mas esta seria atingida por um dos obuses.

Ligeiramente ferido nadou para junto de outra baleeira, cheia de água, que se encontrava à deriva. “Mergulhou” no seu interior. Deixou apenas a cabeça de fora para respirar e tentou não fazer barulho. Temia que os tripulantes do submarino o matassem.

Foi cheio de medo que viu o submersível passar entre ele e o Santa Irene que ardia intensamente enquanto se afundava.

Em redor de António flutuavam boias e outros destroços, mas do resto dos homens que estavam no navio não encontrou sinal. De avistou terra e quando se dirigia para ela, após montar uma vela no bote, foi recolhido pelo navio hospital italiano “Epomeu”. Ali seria tratado e levado para Livorno de onde daria notícias do desastre para Lisboa.


Trigo na ida, armas na volta

O Santa Irene era um cargueiro da Companhia Industrial Portuguesa que partira de Lisboa para Génova a 23 de Março de 1943. Transportava trigo com destino à Suíça e, no regresso, deveria trazer material de guerra para o Exército Português.

Em Génova tinha descarregado o trigo e, segundo uma nota entregue pelas autoridades portuguesas aos britânicos, carregado cerca de 900 quilos de material de guerra, distribuídas por 165 caixas. Continham metralhadoras e peças fornecidas pela Breda que assinara um contrato de fornecimento de material bélico com o Governo Português.

No dia 12 de Abril, pela manhã, estava pronto para partir de novo, agora para Civitavecchia, onde o esperavam mais material de guerra fornecido pela empresa Ansaldo.

Nunca chegaria ao destino.

Por volta dos 10 minutos do dia 13, quando o navio se encontrava entre as ilhas da Córsega e de Elba, foi avistado pelo submarino. O ataque foi fulminante e vinte minutos depois apenas restavam destroços.


Alarme em Inglaterra

As primeiras notícias sobre o desastre chegaram no dia 16 aos jornais de Lisboa que destacaram “a mais viva repulsa” que mais este ataque estava a causar.

Não era o primeiro navio português afundado devido à guerra e não seria o último. Segundo o jornal “O Século” elevavam-se já a 59 o número de marítimos portugueses mortos em incidentes deste tipo durante a guerra.

Nos dias seguintes chegaram mais pormenores sobre o ataque e sobre os homens que morreram perto da costa italiana. Um grande número deles eram naturais de ílhavo.

Também neste dia o Foreign Office britânico (FO - Ministério dos Negócios Estrangeiros) recebia um primeiro telegrama da Embaixada de Lisboa, como informações sobre o afundamento do navio. O mesmo aconteceu com o Almirantado que recebeu uma mensagem mais detalhada do adido naval na capital portuguesa.

O primeiro telegrama recordava também que no dia 12 tinham sido enviadas informações sobre a presença do navio português em águas italianas.

No dia 21 começa a notar-se a preocupação britânica quando alemães e italianos lançaram um comunicado conjunto onde negavam categoricamente qualquer participação no afundamento.


As fotografias e os nomes dos 18 tripulantes foram publicadas no dia 16 de Abril de 1943 pelo jornal "O Século". O único sobrevivente foi António Troia.

Falta referir também um passageiro que embarcou em Génova. A única informação disponível indica que se tratava de alguém chamado Carlos e que era filho de um português e uma chinesa.


Na informação enviada de Lisboa para o Reino Unido John Balfour – um alto funcionário diplomático da embaixada - sugere que o FO prepare uma nota admitindo a responsabilidade e pedindo desculpa caso se venha a confirmar que o afundamento foi causado por um submarino britânico ou aliado.

Como alemães e italianos nunca tinham assumido qualquer responsabilidade em casos anteriores – mesmo quando os indícios deixavam poucas dúvidas sobre a sua culpabilidade - Balfour achava que era uma forma de dar credibilidade às posições britânicas. Por outro lado reforçaria o estatuto moral dos aliados.

Ficava também a sugestão de avançar com indemnizações aos familiares das vítimas.


Culpas divididas?

Não passaram muitos dias para confirmar os receios ingleses. A 23 foram conhecidos os registos do submarino HMS Taurus que assinalavam um afundamento na hora e no local onde o Santa Irene tinha tido o encontro fatal.

O assunto passaria a ser tratado ao mais alto nível.

Através dos canais diplomáticos foram discutidas diversas abordagens antes de enviar uma nota verbal ao Governo Português, entregue pessoalmente pelo Embaixador Ronald Campell a Salazar na tarde de 13 de Maio.

Os britânicos assumiam a responsabilidade, propunham uma indemnização aos familiares dos marinheiros, mas chamavam também atenção para a responsabilidade portuguesa, pois não tinham enviado - a tempo - qualquer aviso assinalando a rota do navio.

Desde o início da guerra que os países neutros foram obrigados a informar as autoridades britânicas sobre as rotas e as cargas dos seus navios. Essas informações deveriam ser enviadas, pelo menos, com quatro dias de antecedência.

A empresa responsável pelo Santa Irene, que iria cruzar águas consideradas “especialmente perigosas”, só o fez na manhã da partida de Génova. Para os ingleses isto ilibava o comandante do submarino de qualquer culpa.

Campell disse a Salazar que a nota não tinha sido tornada pública para evitar o alarme social que esta negligência poderia causar. Deste modo evitavam-se problemas para ambos os lados.

O Embaixador Inglês escreveu no seu relatório que Salazar não se mostrou surpreendido com o assumir de responsabilidades, agradecendo o facto de não ter sido tornada pública a nota. Terá ainda reconhecido que foi uma negligência grosseira por parte da empresa, até porque a empresa teria enviado atempadamente avisos às autoridades alemãs e italianas, apesar destas não terem feito qualquer pedido nesse sentido.

Pouco depois Campell viria a ser repreendido pelo FO por ter proposto as indemnizações, mas elas seria mantidas. Salazar enviou a nota para o Estado-Maior Naval para análise. Este desmantelou a nota britânica, parágrafo por parágrafo, considerando nas conclusões que o afundamento aconteceu à margem das leis da guerra, pois para além do navio estar iluminado e identificado, não se podia realizar uma afundamento apenas porque o navio se encontra numa zona perigosa.

O Chefe de Estado-Maior recomenda também que não seja aceite a proposta de compensação e que sejam tomadas providências “no sentido de que às famílias das vítimas sejam concedidas indemnizações que tornem dispensável a generosidade britânica”.

Estas propostas terão sido aceites e, com ampla cobertura noticiosa, foram atribuídas, em Julho de 1943, cerca de 11 mil contos em indemnizações por parte da Comissão de Seguros de Guerra do Ministério das Finanças”.

Carlos Guerreiro

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