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quarta-feira, 29 de maio de 2019

O incidente do Serpa Pinto (2)
Transporte de refugiados durante a Guerra

Depois de termos construído uma cronologia do incidente que em 26 de Maio de 1944 quase levou ao afundamento do navio Serpa Pinto, vamos olhar neste artigo para o navio e o seu envolvimento no transporte de refugiados durante a II Guerra Mundial. Tentamos também enquadrar a sua actividade no contexto nacional e internacional recorrendo para isso a fontes diversas entre as quais destaco o trabalho da historiadora Irene Pimentel, uma das das primeiras a escrever sobre este tema.

O Serpa Pinto no porto de Lisboa.
O Serpa Pinto pertencia à Companhia Colonial de Navegação (CCN), fundada em 3 de Julho de 1922 por um conjunto de empresários com negócios em Angola e na Guiné, que não viam as suas necessidades satisfeitas pelas companhias existentes, nomeadamente, a Companhia Nacional de Navegação.

No princípio da II Guerra Mundial a sua frota era constituída por quatro paquetes – o Mouzinho, o Colonial, o João Belo e o Guiné –, seis unidades de carga – o Cassequel, o Ganda, o Malange, o Lobito, o Pungue e o Sena -, para além de rebocadores, batelões e outras unidades de porte mais reduzido operando em portos do continente, África Ocidental e Oriental.

A empresa, uma das maiores do sector naquela época ao lado da Companhia Nacional de Navegação, mantinha rotas de Lisboa para o norte da Europa, EUA, América do Sul, África Ocidental e Oriental.

O Serpa Pinto foi adquirido em Março de 1940, para assegurar uma nova rota para o Brasil, onde se registava um aumento do transporte de passageiros e carga. Tinha sido construído nos estaleiros da Belfast Workman, Clark & C. Lda, na Irlanda do Norte, e entregue em 1915 com o nome “Ebro” a uma empresa de armadores britânica. Logo nesse ano foi vendido à “Yugoslavensky Lloyd”, da Jugoslávia, navegando com o nome “Princesa Olga”, até ser vendido à CCN.

Em termos de dimensões o Serpa Pinto e o Mouzinho foram, durante aquele período, os maiores navios da frota ao serviço da "Colonial", tendo ambos pouco mais de 147 metros de comprimento, e, respectivamente, 606 e 700 acomodações para passageiros. O primeiro permitia o transporte de 537 passageiros em primeira classe, 73 em segunda, 109 em terceira e 249 nas cobertas, caso fosse necessário. Uma capacidade importante tendo em vista o turbulento período que se aproximava e que transformaria Lisboa no principal porto de saída para milhares de refugiados que procuravam escapar ao poder ideológico e militar de Hitler.


Portugal e o transporte de refugiados durante a II Guerra Mundial

Os primeiros refugiados do nazismo chegaram a Portugal pouco depois da subida de Hitler ao poder e até 1936 vários integraram-se na sociedade portuguesa. Com a implementação de leis antissemitas mais restritivas na Alemanha, especialmente a partir de meio da década de 30, aumentaram também os que tentavam escapar para paragens mais seguras.

Para evitar este crescente fluxo – constituído essencialmente por refugiados judeus ou políticos - vários estados europeus implementaram legislação que impedia a sua passagem e instalação. Também Portugal efectivou, em 1936, leis que restringiam a entrada e a permanência dos que fugiam ao nazismo e, a partir de 1938/39, esse bloqueio acentuou-se com a Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE) a intervir de forma mais enérgica na zona fronteiriça.

Mesmo assim chegaram ao porto de Lisboa, até Agosto 1939, vários paquetes alemães oriundos de Hamburgo trazendo refugiados que aqui demandavam a navios holandeses, espanhóis, gregos ou italianos seguindo rumos a destinos além-mar onde ainda autorizavam a sua permanência. Durante este período as companhias portuguesas mantiveram-se centradas nas suas rotas tradicionais, com carga e passageiros a seguirem para as colónias africanas e ilhas adjacentes enquanto para as Américas e para os portos do norte da Europa a aposta passava essencialmente pelo transporte de mercadorias.

Em 1940, com a ocupação da França pelas forças nazis chegaram milhares de pessoas ao país, tornando mais difícil conter e controlar a chegada de forasteiros. Este período coincide também com o desaparecimento dos portos portugueses das importantes marinhas mercantes dos países que entretanto tinham entrado na guerra - por vontade própria ou não - nomeadamente, a Holanda (maio de 1940), a Itália (Junho de 1940) ou a Grécia (Outubro de 1940), o que causou um importante desequilíbrio entre a oferta e a procura de passagens para o outro lado do Atlântico.

Aos refugiados restava viajar em unidades navais neutrais brasileiras, suecas, espanholas ou americanas, enquanto as companhias portuguesas, nomeadamente, as que tinham unidades de passageiros como a Colonial, a Nacional ou a Insular despertavam para um mercado que, at´
e aí, tivera importância residual na sua actividade comercial. É especialmente a partir de 1941 que os armadores nacionais vão apostar em rotas periódicas para os EUA ou disponibilizar-se para fretamento dos seus navios por associações ou grupos de apoio a refugiados, portuguesas e estrangeiras, entretanto instaladas em Lisboa.

Mesmo assim as dificuldades para adquirir um bilhete vão sentir-se de forma premente e em 1941 obter lugar num navio torna-se uma questão crítica até porque os vistos, tanto de permanência como de viagem, têm prazos de utilização limitados e muitos caducam antes de ser possível embarcar. Por outro lado subiram os preços das passagens. Se antes da invasão da França o custo de uma viagem daquele país para Nova Iorque rondava os 145 dólares, em Outubro de 1940, saindo de Lisboa, pagavam-se já 195 e em Fevereiro do ano seguinte 350.

Dados contidos no livro "Judeus em Portugal 
durante a II Guerra Mundial" de Irene Pimentel.

De salientar que houve navios vários navios portugueses a realizar o transporte de refugiados ainda antes de 1941, apesar desse número ser relativamente reduzido. Em 12 de setembro de 1940, por exemplo, o paquete “João Belo”, na sua rota habitual para Moçambique, levou até ao Congo Belga cerca de uma vintena de judeus belgas que tinham chegado a Lisboa a bordo do “Dora”, um pequeno navio fretado e que fora impedido de chegar ao destino devido ao confronto entre as frotas britânica e francesa no norte de África.

Em Novembro de 1940 a imprensa americana já dava conta de que o Governo de Salazar tinha autorizado aos armadores portugueses o estabelecimento de linhas entre Lisboa e Nova Iorque, enquanto em maio do ano seguinte noticiavam que 14 navios tinham sido desviados das habituais rotas coloniais para assegurar o transporte de passageiros e mercadorias como trigo, carvão e fertilizante entre os dois países. Vários são de pequena tonelagem e com reduzida capacidade de alojamento, como eram o caso do Guiné, do São Thomé, do Pungue ou do Lobito, mas nesta rota surgem também unidades com grande número de acomodações como eram o caso do Quanza, do Niassa, do Carvalho Araújo ou do Serpa Pinto.


Serpa Pinto: o navio do Destino

O “Serpa Pinto” assume cedo um papel de destaque nesta nova realidade e nos primeiros oito meses de 1941 transporta mais de 3000 passageiros, superando em quase um milhar o navio seguinte, o Niassa, como se pode ver pelos dados reunidos no Quadro 1 - copiado do livro de Irene Pimentel "Judeus em Portugal durante a II Guerra Mundial" - e que lista os passageiros transportados por diversos navios portugueses durante o período referido.

Deve ter-se em conta que tão elevado número de passageiros transportados não resulta apenas da capacidade, mas também das rotas percorridas. Uma viagem de ida e volta entre Lisboa e os portos coloniais da África Oriental poderia prolongar-se por vários meses enquanto uma ida e volta áo continente americano, mesmo com diversas paragens, se podia fazer em mês e meio.

Lista de viagens do Serpa Pinto
com refugiados, construída com base
nas listas de passageiros da Joint.
Entre a documentação disponibilizada on-line pela American Jewish Joint Distribution Committee (Joint), uma das instituições americanas que em Lisboa organizou e financiou a evacuação de refugiados judeus para diversos destinos, encontram-se listas de passageiros confirmando que entre 1941 e 1945 o Serpa Pinto realizou pelo menos uma vintena de viagens entre Lisboa e portos nas américas do norte, do sul e das Caraíbas.

A imagem do Serpa Pinto tornar-se-ia icónica. São diversas as fotografias assinalando a saída de refugiados de Lisboa que mostram o navio. Personalidades famosas como Marcel Duchamp ou Simone Weil cruzaram nele o Atlântico e o escritor Stefan Zweig lembra-o nas suas memórias. O seu nome surge em reportagens e mais recentemente as suas deambulações de guerra foram retratadas pela obra da belga Rosine De Dijn, “O Barco do Destino”.

Curiosamente numa das viagens, que teve lugar em Junho de 1942, o navio atravessou o Atlântico até ao Rio de Janeiro e Nova Iorque levando mais de 400 judeus e no regresso trouxe 940 diplomatas e outros cidadãos alemães expulsos na sequência da entrada do Brasil na guerra. Das suas aventuras em tempos de guerra merece ainda destaque o salvamento, a 8 de Outubro de 1940, de 22 tripulantes do navio grego Antonios Chandris afundado no Atlântico Sul.

Carlos Guerreiro

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