Primeira Página do "Diário Popular" de 22 de Novembro de 1945. |
Neste comboio, onde seguiam vários portugueses, reuniram-se os últimos 400 prisioneiros do campo de Vernet e outros 170 homens e mulheres vindos da prisão de Saint-Michel. A partiram para Bordéus aconteceu a 2 de julho de 1944, seguindo depois para Angoulême onde foram alvo de um bombardeamento por parte de aviões aliados. Não conseguindo seguir viagem a composição regressou a Bordéus, onde esperaram 28 dias na sinagoga da cidade antes de retomar o caminho.
Quando partiram, a 9 de Agosto, o grupo seguiu reforçado com mais prisioneiros elevando o total de deportados para cerca de 800. Pouco depois a destruição das vias obrigou-os a percorrer duas dezenas de quilómetros para fazer o transbordo para outro comboio e a viagem prolongou-se sob o sol escaldante de Agosto por entre inúmeras voltas e reviravoltas causadas por bombardeamentos, sabotagens e a fuga aos avanços aliados que tinham invadido a Normandia no dia 6 de Junho. Quando chegaram a Dachau, no dia 28 de Agosto, saíram do comboio apenas 536 pessoas...
Retomamos a transcrição:
(...)
A viagem sem fim começa
30 de Junho de 1944. Há quanto tempo não vejo gente? Nem eu sei já. À minha frente, só espectros e fardas. Fardas pretas, verdes, cinzentas. E nesse dia quinhentos homens, quinhentas sombras, os que havíamos ficado no campo, restos de todas as levas anteriores, somos reunidos para partir também. Os alemães estavam furiosos. Os planos haviam falhado. Os “outros” tinham desembarcado na Normandia. Estavam no grupo franceses, espanhóis – mutilados do guerra – alguns belgas fugidos e eu. Mal tivemos tempo de fazer uma trouxa dos nossos trapos e das nossas poucas, saudosas recordações. E partimos em camiões, escoltados pelos famosos “S.S.” que nunca tínhamos visto e eram verdadeiramente brutais. Cochichávamos uns para os outros: “Serão homens ou feras?” Nunca descobri a diferença.
Chegámos a Toulouse. Meteram-nos na Caserna Caffareli, uma
vasta cela, guardada por sentinelas reforçadas. Impossível comunicar com o
exterior. Apertados, 500 corpos encostados ombro a ombro, nem sequer podíamos
deitar-nos. Moídos, cheios de sono, despertaram-nos na madrugada do terceiro
dia, espancados pela guarda para sair mais depressa. Lançámos mão rapidamente à
parte menos volumosa da nossa bagagem e corremos, noite fora, ao frio até à
estação de mercadorias. Deparámos então com um comboio já formado. Quinze
vagões dos de transporte de gado. Alguns já estavam repletos. Eram presos
vindos de outros pontos. Repartiram-nos pelos espaços vagos. Entro no meu e
leio pintado a branco na madeira:
“Lotação – 8 cavalos ou 40 homens”.
Ficamos setenta. Portas aferrolhadas, sem janelas, sem ar e
sem luz, esperámos de olhos abertos, ouvidos à escuta. Começou então a grande
viagem…
Dentro do vagão era sempre de noite
Horas e horas seguidas naquele monótono andamento enlouqueciam-nos. Para onde nos levavam? E cada vez era maior o silêncio naquele vagão infernal para que não se perdesse uma palavra da conversa com sentinelas ou uma indicação dos empregados dos caminhos-de-ferro. Lá dentro era sempre noite. Para contar os dias, precisávamos não esquecer que as visitas das sentinelas se faziam de manhã e de tarde. Duas, um dia. Palavras soltas colhidas aqui e ali davam-nos uma indicação: íamos para Compiegne. Mas seria verdade? As conjecturas que cada um de nós fazia não podiam convergir. E todos começámos a sentir-nos invadidos pelas apreensões mais disparatadas. Sem ar, sufocados pelo calor, começámos a deitar fora a roupa, esperançados que assim resistiríamos melhor, atenuaríamos a transpiração. O cheiro de 70 homens que não podiam lavar-se era nauseante. E o sol – que belo sol devia gozar-se lá fora! – queimava, transformava os vagões em fornalhas.
Ninguém podia aguentar mais, alguns começavam a perder os
sentidos. Não, não podíamos. Quási nus, lábios secos, transfigurados, nós, os
que ainda estávamos de pé, começámos a gritar e a bater nas paredes. Que ao
menos nos abrissem a porta para respirar. Mas não abriram. E embora o suplício
fosse até então apenas de algumas já preferíamos ser fuzilados que morrer
naquelas condições. Alucinados pela sede, gotejando suor, nus, sujos de poeira,
a pele quebradiça, escaldante, cheia de resíduos de cimento, ao transporte do
qual os vagões haviam servido antes, parecíamos personagens de um pesadelo
infernal.
E o calor aumentava. E este desejo imenso de querer morrer! Se ao menos um de nós tivesse uma arma, uma faca, se ao menos um de nós tivesse forças para apertar com as mãos… Massas informes, atirados uns sobre os outros, cinzentos do cimento, avermelhados do calor e da raiva, foram-se calando as vozes pouco a pouco.
E de repente, uma chiadeira de travões e de metais que chocam. E vozes que se aproximam. E um ruído de portas que se abrem. Agora, é no nosso vagão. Ficámos todos de olhos pregados na porta que é aberta com estrondo. A princípio, vemos só a luz do sol que nos cega. Depois, distinguimos as sentinelas e uns homens que não conhecemos e olham para nós, indiferentes, armados de granadas e metralhadoras. Dos 70 que éramos no vagão, só cinco estão de pé e são os primeiros a descer e a ajudar os outros.
O medo de não ter forças para viver
Foi então que me enchi de medo, de um medo feroz que mal podia exteriorizar-se porque eu nem sequer conseguia abrir a boca para falar.
É que eu tinha à minha frente, outra vez, a vida, o ar livre, talvez uma lata de água. E eu que gritara, que me horrorizara com a ideia de que podia morrer ali para um canto sem ar e sem luz, perdera de repente todo o desejo, todas as possibilidades de reagir. Perdera a esperança. E queria morrer. Não era capaz de arredar dali. Enchi-me de medo. Que iria eu fazer daí para diante? Um dos homens armados de metralhadora subiu e deu-me um pontapé. Ainda bem. A dor fez-me reagir. Pus-me de pé. Cambaleei, agarrei-me a ele. Levei um safanão. Cheguei à porta e desci.
Estendi-me ao comprido no talude. Vieram então os assistentes da Cruz Vermelha. E, a pouco e pouco, aquele exército de fantasmas, lavados, reanimados com um pedaço de pão, um tomate cru e uns goles de água, começou a pôr-se de pé. Vieram logo ordens enérgicas. E os homens da Cruz Vermelha foram proibidos de nos alimentar. E fizeram-nos subir, de novo, para os vagões. Mas as portas não foram fechadas completamente. Uma fresta de cada lado, uma em frente da outra, seria uma corrente de ar fatal para quem não tinha roupa sobre a pele. Mas era uma corrente de ar. Estabelecemos então turnos para respirar melhor. E de cinco em cinco minutos (pouco mais ou menos, pois nenhum de nós tinha relógio) um grupo ia encostar a boca à fresta da porta. Depois esperámos. Quando o comboio se pôs em marcha, já era noite. Soubemos mais tarde que já não podendo seguir o itinerário previsto, por as linhas estarem cortadas pelo “Maquis”, haviam decidido levar-nos para Perigueux. Chegados a Bordéus, e após alguns instantes de paragem que nem sequer deram tempo a que a Cruz Vermelha nos socorresse de novo o comboio pôs-se em marcha lenta. A meio da noite, parámos. O comboio tinha de retroceder. As vias estavam interceptadas. E voltámos a Bordéus, em direcção a Angoulême. Aí chegados verificou-se que a estação estava destruída pelos bombardeamentos.
O comboio foi desviado para uma linha de mercadorias, à espera que os “rails” fossem reparados. Abrem-nos então as portas e mandam-nos sair aos cinco de cada vez. Num pequeno regueiro que corria ao fundo do valado e a todo o comprimento do comboio, via-se então uma fila de desgraçados nus e sujos, de barba crescida e cara congestionada pelo sofrimento, procurando aliviar-se da tortura de uma necessidade tanto tempo contida. Para refrescar os lábios tumefactos pela febre, alguns dos infelizes arrancavam as ervas que tinham ao alcance das mãos. Outros, para quem é demasiado atroz o suplício da sede, não resistem à tentação da água que corre no mesmo regato onde os companheiros se encontram agachados. Transtornados, sem discernimento. Bebem-na, sôfregos. Recuo para o vagão, cheio de sede, endoidecido por aquela visão.
Um ataque inesperado, na noite
O comboio parte. Para onde? Sabe-se lá. E ainda não comi – nem sequer o pedaço de pão da Cruz Vermelha, que não houve tempo de o distribuir a todos.
Em Parcoul-Mediac, nova paragem. Depois no silêncio, ruídos estranhos e uma gritaria desusada. São aviões ingleses, de caça, que fazem um barulho infernal. Os soldados da escolta aferrolham-nos as portas e dispersam-se pelos bosques próximos. E assestam sobre os vagões as metralhadoras para que não possamos evadir-nos. Espreitamos pelas frinchas do vagão desconjuntado. É verdade, terrivelmente verdade. Por cima, os aviões. Aos lados, os alemães, às espera que um de nós arrombe a porta para fugir. Os aviadores ingleses que haviam visto fugir os alemães tomam o comboio por um transporte de tropas inimigas. E baixam. E abrem fogo. E todo o comboio, de uma ponta à outra, é esburacado pelas balas explosivas. Aterrados, impossibilitados de sair, vemos a trajectória luminosa das balas descrever caprichosas e alucinantes fantasias. Vamos morrer todos. E, ao meu lado, um velho, de grandes barbas, chora. Um outro lá ao fundo, grita. Estará ferido?
Não sei como surgiu aquela ideia. De repente, uma camisa branca, outra azul e outra vermelha são atadas a um pau. Passa-se este simulacro de bandeira pela fresta do vagão. Quando voltam à carga, os aviadores percebem o sinal. E deixam-nos em paz.
Os gritos do feridos começam a ser horríveis. Há três mortos e uns vinte em estado grave. Alguns são evacuados para o hospital de Angoulême.
E um novo dia amanhece.
Reportagem de Fernando Teixeira, in Diário Popular, 22 de Novembro de 1945
--- Leia aqui as PARTE 1; PARTE 3; PARTE 4.
Interessantíssimo!
ResponderEliminarHistória que merecia ser mais divulgada. Afinal houve portugueses que sofreram os horrores dos campos de concentração nazis, mas tal situação nunca foi enfatizada
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