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quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019

«O homem que veio do Outro Mundo» (3)
O longo caminho para Dachau

Continuamos com a transcrição da entrevista dada por José Agostinho das Neves ao jornalista Fernando Teixeira em finais de 1945. O homem que terminaria a guerra no campo de concentração de Dachau continua o relato do que aconteceu durante a viagem no "comboio fantasma". Por causa das acções da resistência francesa e do avanço aliado após o Dia D, o percurso entre o campo de concentração francês de Vernet e a Alemanha, prolongou-se por meses...

Ficam também as primeiras impressões sobre Dachau.

Como já foi referido a entrevista foi tema em duas edições distintas do jornal Diário Popular. Com esta publicação vamos transcrever as primeiras linhas publicadas na edição do dia 23 de Novembro de 1945.

Título na primeira página do "Diário Popular", de 25 de Novembro de 1945.

O Homem que veio do Outro Mundo (2)

A caminho de Dachau

Dois meses de comboio para ir de França à Alemanha
A vida num campo de concentração alemão descrita por um português prisioneiro

A conversa com o meu companheiro daquele fim de tarde de Paris durou algumas horas. E o que mais me impressionava nele era a arrumação das suas recordações. Dir-se-ia que tinha escrito na memória, que folheava páginas de um livro. Foi ele que me deu a explicação:

- Não se admire. Durante meses e meses, não pude ter o prazer do isolamento. Vivi sempre, onde quer que encontrasse, lado a lado, ombro a ombro com outros homens. Não olhava para qualquer parte que não visse um rosto amargurado. Não soltava um gemido que não recebesse outro em troca. E eu que gostava de me isolar, de pensar – só encontrei remédio nesta espécie de nirvana a que me votava. Durante esses momentos, recapitulava a minha vida e fazia o possível por esquecer o que me rodeava. Tantas vezes o fiz que as imagens, as datas e as palavras, à força de repetidas, nunca mais me esqueceram.

Uma pergunta que eu queria fazer-lhe há muito tempo:

- Havia muitos portugueses nos campos de concentração onde esteve?

- Em Dachau, onde terminei a minha odisseia, conheci oito, vindos de vários pontos da Europa. Só regressei eu e outro que mais tarde vi aqui em Paris e creio que vive agora na província. Comigo no comboio seguira também outro. Em Angoulême, foi atingido por uma bala explosiva numa perna, durante o ataque dos aviões ingleses. Mas como no momento de ser transportado para o hospital, lhe foi descoberta nos bolsos uma carta, devolveram-no para o vagão e ali ficou sem qualquer socorro – à espera que a perna apodrecesse ou se curasse milagrosamente. Soube-se depois que a carta lhe fora entregue por um companheiro com o pedido de, no Hospital, a mandar para o correio. Esse companheiro tinha mulher e queria dar-lhe a ilusão de que vivia. A carta nunca chegou ao seu destino – e ele também não. Morreu pouco tempo depois, noutro vagão desconjuntado de outro comboio infernal.

Uma pausa para «ler no cérebro». E a história interrompida, contínua:

- Andávamos nove dias neste vaivém de comboios no sul da França. Impossível avançar, tais eram as destruições operadas pelo «maquis» nas vias férreas. E voltámos a Bordéus. Desembarcámos a custo. Mal nos tínhamos de pé. Mandaram-nos seguir ruas fora durante a noite e acabaram por nos metes no edifício de uma sinagoga onde ficámos dias e dias à espera do inverosímil: que os comboios pudessem seguir para a Alemanha. O templo israelita tinha sido, no seu interior, completamente devastado pela soldadesca alemã. Ainda havia montes de pedras, de madeira, de caliça. Misturámo-nos com o lixo, os ratos, as baratas, e toda a espécie de parasitas. Amontoámo-nos uns em cima dos outros a fim de arranjar lugar deitado para os doentes e feridos. O português, com a barriga da perna furada, gritava desesperadamente. Quanto sofreu o infeliz! Mal sabia ele que só dois meses depois, na Alemanha, seria tratado! E quem lhe diria que, após esta prova de resistência quási inacreditável, haveria de morrer estupidamente de uma gripe – que de ninguém tratou evidentemente!


100 homens fechados à chave

Certa vez tínhamos acabado a nossa única refeição do dia – uma malga de caldo e um pedaço de pão de cor duvidosa – quando se abriram de novo as portas da sinagoga. Íamos voltar a embarcar. Na estação, esperavam-nos mais 400 presos, entre os quais 80 mulheres, vindos não sei de onde. Encurralaram-nos em vagões como nas viagens anteriores – somente um pouco mais apertados. Em vez de 70, como até ali, éramos agora 100 homens fechados à chave com bons cadeados. A respiração era deficiente mas felizmente – com pouco nos contentávamos! – havia frestas abertas no tejadilho. Perdi de vista o português ferido, não voltei a ver o velho de barbas brancas que chorava e que ficou para sempre estendido no chão frio da sinagoga. Pôs-se-me um nó na garganta ao saber por outro prisioneiro que o pobre velho falara de mim ao morrer. Como tenho saudades do tempo em que ainda me comovia!

Como não podíamos seguir a viagem com o itinerário traçado antes, voltámos a passar por Toulouse e dirigimos-nos a Nimes, por Narbomei. A nossa chegada àquela região coincidiu com o desembarque das tropas francesas em Saint Raphael. E como a aviação americana não deixava de bombardear os arredores, o comboio parou. Começaram então oito longos dias de sofrimentos. Fechados no vagões, comendo só uma vez ao dia – um pedaço de pão coberto de bolor e uma rodela de salsicha – e não tendo mais que meio decilitro de água por 24 horas, fomos caindo doentes a pouco a pouco. A fome, a sede e o calor mudavam as expressões. Loucos ou moribundos?

Como a desgraça faz dos homens feras sem coração! Se nos visse, se visse como nos batíamos por um pedaço de pão a mais que sobejasse da boca de um doente! Depois as salsichas acabaram e foram substituídas por um tomate cru para cada vagão. Faz ideia do que seja dividir por 100 homens um tomate cru? Pois ninguém ficava sem o seu quinhão. E que ficasse! Era uma questão que nunca mais acabava – e ódios surdos e lutas e insultos.


Um batalhão de miseráveis atravessa vilas e aldeias

Quando o comboio se pôs de novo em marcha, poucos quilómetros andados, uma ponte destruída por bomba de avião cortou-nos, de novo, a passagem. Somos obrigados a descer e a abandonar as nossas bagagens, pobres bagagens de roupas sujas e velhas e de retratos amarelecidos pelas lágrimas, pelo suor e pelo calor – restos de uma vida que ficou para trás.

Fomos a pé de Roquemaure a Sorgnes, cerca de 20 quilómetros através de vilas e aldeias. Quando me lembro dessa caminhada!... Batalhão de miseráveis, descalços, rotos, alguns quási nus, olhos esgazeados, lábios gretados da febre, pés inchados, mãos descarnadas sempre em busca de ervas ou raízes no chão para levar à boca escaldante, ávida, sôfrega do que quer que fosse trincável!
Atrás e aos lados vinha a matilha dos “cães de guarda”, espingardas e metralhadoras prontas a disparar se um nós ficava para trás, coronha descarregada na cabeça do que não tivesse força para andar.

Mais adiante esperava-nos outro comboio. Voltámos aos vagões. E tudo se passou, dias e dias, da mesma maneira, até chegarmos a Pierreffite, onde novo ataque de aviação nos esperava. Novo e trágico ataque. Ah! Se eles soubessem que nós não éramos alemães! Mas tudo era impossível para lho fazer ver. Nem nos restava o ardil das camisas a fazer de bandeira. Qual de nós ainda tinha camisa?
Foi verdadeiramente infernal aquilo. Dessa vez o ataque era feito à bomba. O meu vagão não tinha sido atingido, mas quando saímos – porque a locomotiva fora pulverizada por um impacto directo – verificou-se que nove prisioneiros estavam mortos e 20 gravemente feridos. Estendidos na relva de um prado à beira da linha os infelizes entoavam uma canção trágica feita de dezenas de gritos, de brados de raiva  - de palavras sem nexo em várias línguas. Socorremo-los como pudemos porque os alemães – “valentes” como já sucedera anteriormente – tinham-se refugiado no bosque e vigiavam-nos com as metralhadoras, não fosse algum aproveitar a ocasião para fugir. 

Rasguei as calças que levava na trouxa da roupa e fiz ligaduras. Outros procuraram fazer o mesmo. Outros limparam feridas e fizeram pensos com ervas e folhas de árvores. Mas os nosso “doentes” não resistiram na maior parte, aos “tratamentos”. Um morreu-me nos braços. Outro pôs-se em pé, desvairado, louco e desatou a fazer sinais inúteis aos aviões que ainda se viam no ar. Conseguiu o que queria. Uma rajada de metralhadora alemã acabou com ele.


A chegada a Dachau

Estamos a conversar há horas. Aproveito uma pausa para lhe propor um pequeno passeio à beira do Sena. A noite vem caindo aos poucos. Encontramo-nos os dois cansados: ele de falar, eu de o ouvir com atenção para não perder uma palavra. Seguimos por um passeio da margem esquerda. Caminhamos lado a lado, sem proferir palavra, a gozar a quietude e o encanto da rua que se recolhia à sombra dos chorões. E pisávamos voluptuosamente folhas amarelecidas, esquecidos por momentos, do mundo que ele vivera – do “Outro Mundo”.

Foi o meu companheiro que voltou a falar outra vez:

- Por fim, e depois de muitas peripécias, chegámos à Alemanha. Tinham-se passado dois meses após a nossa saída do campo de concentração em França. Dos 500 que éramos a princípio, dos 900 que fomos depois em Bordéus, só restava metade. Os outros tinham morrido - ou fugido.

- Fugido?

- Sim. Nunca soube como, mas alguns ainda tiveram forças para fugir nas andanças de subor e descer dos vagões. Onde teriam ido parar? No estado de saúde e fraqueza em que estavam, talvez não tivessem andado mais de 500 metros. Mas quem sabe medir o poder da resistência humana à dor e à fome?

- Todos os mortos foram vítimas dos bombardeamentos e da fome?

- Muitos não resistiram também aos maus tratos. As coronhas das espingardas alemãs fracturaram muitos crânios.

Uma nova pausa. Paramos junto a uma alfarrabista. Olho um velho volume, sujo, carcomido pelo uso. Lemos os título: “Viagens  de turismo na Alemanha”. E desatamos a rir à gargalhada. Depois ele volta a contar:

- Se a viagem fora cruel, medonha, desumana, a nossa recepção no campo de concentração de Dachau foi ainda pior. Mal as portas dos vagões forma abertas, cães enormes saltaram para dentro deles ensinados na missão de nos expulsarem depressa. Os guardas vociferavam o maldito “Alles raus!”. Fugíamos, com igual temor, aos homens e aos cães, saindo dos vagões aos trambolhões, a cair uns por cima dos outros.

Chegados ao campo, após uma marcha de algumas centenas de metros, reuniram-nos no meio de uma praça triste ladeada de toscas construções. E ali ficámos toda a noite, deitados no chão, quási despidos, sem nada com que nos abrigar. No dia seguinte, depois das formalidades do registo de entrada, fomos conduzidos aos serviços de recepção. Aí despojaram-nos de tudo quanto possuíamos. Ficámos nus – à espera de um “barbeiro” que nos rapou da cabeça aos pés. “Vestiram-nos” então umas calças e um casaco em farrapos, herança de um pobre prisioneiro que morrera.

Reportagem de Fernando Teixeira, in Diário Popular, 23 de Novembro de 1945

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