Fica também uma entrevista dada ao Jornal "i" pelo realizador.
João Canijo.
"Por cá as coisas passam e desaparecem sem deixar marca"
por Luís Leal Miranda, Publicado em 22 de Abril de 2010
Pela primeira vez a abertura do IndieLisboa é um filme português. João Canijo faz as honras com um documentário, "Fantasia Lusitana
Por causa de filmes como "Sapatos Pretos", "Ganhar a Vida" ou, mais recentemente, "Mal Nascida" (2007), João Canijo tornou-se o realizador que filmava um país que julgávamos já não existir. Com "Fantasia Lusitana", o seu primeiro documentário, Canijo mostra-nos um Portugal que não sabíamos que alguma vez tinha existido. É o filme de estreia da sétima edição do festival IndieLisboa e o primeiro documentário português sobre o Estado Novo a chegar ao cinema. Nele, a história de um país a viver na ilusão da paz e da prosperidade é contada com recurso a imagens de propaganda do Antigo Regime - e contrastada pelos testemunhos de refugiados da II Grande Guerra que passaram por Lisboa. "Quem tiver olhinhos vê que o nosso país não mudou assim tanto", sentencia.
Porque decidiu filmar "Fantasia Lusitana"?
Foi uma encomenda da Periferia Filmes, uma produtora jovem que tinha alinhavado um projecto sobre refugiados famosos que passaram por Portugal durante a II Grande Guerra.
Aceitou logo?
Sim, mas mudei o ângulo da coisa: quis colocar em oposição a realidade fantasista nacional e a realidade nua e crua da guerra no resto mundo. Tendo já a noção de que cá a Grande Guerra era vista como uma coisa que se estava a passar noutro planeta.
Como escolheu as imagens de arquivo que iria usar?
Decidi-as logo no início. O documentário sobre a Exposição do Mundo Português eu sabia que existia, lembrava-me do meu pai me falar daquilo e tinha a ideia de que era uma coisa fantástica. O resto das imagens foram recolhidas por um rapaz novo formado em História em França, o Hugo dos Santos. Esteve quase um ano metido nos arquivos do ANIM e em sites de arquivos de imagens. Ele via e fazia resumos muito bem-feitos do que estava na fita. Eu fiz uma pré-selecção depois do trabalho dele, vi e escolhi.
O que é que conhecia sobre este tema?
Aquilo que me contavam o meu pai e o meu avô: as plateias na esplanada em frente à pastelaria Suíça para ver as mulheres estrangeiras a fumar de perna cruzada. A animação que havia em Lisboa naquela época devida aos estrangeiros. E um pormenor chocante que me fazia crer que as coisas não estavam a ser todas contadas por aqui: o facto de as pessoas terem de ligar a BBC na onda média para ouvir notícias da guerra. Lembro-me, porque tenho idade para isso, dos noticiários que davam antes dos filmes relatados por um senhor muito eloquente que terminavam sempre com a frase: "E assim vai o mundo".
Como é que estruturou o documentário daquela maneira?
O ponto de partida foi sempre a oposição entre a fantasia e a realidade. Logo no primeiro dia de montagem veio o título e o título define o filme: "Fantasia Lusitana". Depois de termos um primeiro alinhamento, passámos a investigar se a passagem de tanta gente por Portugal naquele período tinha afectado o país. A resposta foi: não, não deixou marca.
Quando viu as imagens escolhidas, o que é que sentiu?
Vi que os telejornais e o documentário sobre a Exposição do Mundo Português são ainda mais delirantes do que aquilo que pensava. Um delírio, uma irrealidade e um fantasismo completamente incríveis.
Por exemplo?
[começa a imitar partes do filme] "Aí vemos uma família timorense a descer da sua habitação lacustre" ou "emocionante, verdadeiramente emocionante, a excursão composta exclusivamente de operários católicos a Fátima". E no final, "o Cristo-Rei que nos observa do cimo em perene solicitude". [Risos]
Como realizador, como olha para aquelas imagens?
O nosso produtor estava sempre contra a minha escolha de imagens porque achava que aquilo não tinha qualidade. Achei que isso seria indiferente.
É propaganda mal feita?
É mal filmado, mal editado, tudo mau. Contemporâneo daquilo é a Leni Riefenstahl e não se pode comparar esse trabalho ao dos homens descritos pela propaganda como "os realizadores dos anos de ouro do cinema português".
O que é que quer provar com este filme?
Não quero provar nada. A ideia é apenas mostrar como as coisas eram. E quem tiver olhinhos vê que a herança ainda cá está e o nosso país não mudou assim tanto. Há uma coisa no documentário que é chocante: o Salazar escrevia os seus discursos para pessoas que ele sabia serem ignorantes. Ele falava contando sempre com a falta de educação do povo português. E esse continua a ser o mal de Portugal, as pessoas preocupam-se muito pouco com a educação.
O documentário não tem entrevistados, nem um texto em off. Porque recusou qualquer tipo de explicação?
Foi uma premissa desde um início. E as imagens falam por si.
Tem filhos adolescentes, mostrou-lhes o filme?
Mostrei na mesa de montagem ao meu filho de 17 anos, ficou boquiaberto. Mas queixou-se que não percebia algumas coisas, partes do filme que deviam ter umas explicações. Mas eu não cedi.
Acha que o filme vai chegar a muita gente?
Ao início estava desconfiado, mas tenho recebido reacções tão boas de tanta gente que neste momento acredito que sim.
Essa parte da nossa história não está bem contada na escola?
Não tem a ver com isso. Tem a ver com o mal português de nada deixar marca. As coisas passam e desaparecem, sem deixar rasto. Vamos ao interior de uma aldeia portuguesa e não conseguimos fazer a ligação entre a parte antiga e a parte actual. A aldeia original desapareceu, a arquitectura tradicional desapareceu sem que ninguém se preocupasse com isso. Não deixou marca nenhuma.
Como se explica isso?
Pode ser uma reacção à miséria de outros tempos, mas essa explicação não me satisfaz.
A marca da ditadura mantém-se?
Ainda vai demorar uns anitos a desaparecer esta herança negativa. Eu ainda fui criado com as referências da ditadura e os meus filhos vão ser criados por mim, com esses preceitos. Por isso os meus netos ainda vão ter um bocado disso.
Pode descrever um pouco o filme que está a fazer agora?
É sobre a maneira como o amor consegue sobreviver na aridez e num ambiente tão agressivo e opressor como a periferia de Lisboa, onde as condições de vida são terríveis.
Está a filmar no Bairro Padre Cruz, na Pontinha. Porquê?
É uma espécie de bairro social dos anos 50, com casinhas em vez de prédios na parte antiga. Uma versão pobre do Bairro da Encarnação ou Caselas. Não é um bairro da lata nem um típico bairro social de prédios. É um tipo muito particular.
Depois da antestreia no IndieLisboa, "Fantasia Lusitana" vai poder ser visto nos cinemas a partir do dia 29
Link:
http://www.ionline.pt/conteudo/56343-joao-canijo-por-ca-as-coisas-passam-e-desaparecem-sem-deixar-marca
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