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segunda-feira, 12 de setembro de 2011

Algumas perguntas a Ted Hedges



Ted Hedges foi engenheiro de voo nos quadrimotores B-17 da Esquadrilha 220, do Comando Costeiro da RAF, durante a II Guerra Mundial. Em Outubro de 1943 chegou aos Açores integrado numa das primeiras tripulações a aterrar na base das Lajes.
O objectivo dos britânicos era tapar o “buraco no Atlântico” – uma vasta área do oceano sem cobertura aérea – onde os comboios de navios que cruzavam o mar dos Estados Unidos para a Europa eram constantemente alvos de ataques dos U-Boats alemães.  

Ted foi um dos homens da RAF que nas suas Fortress – nome dado pelos ingleses aos B-17 - realizou patrulhas, escoltou comboios navais e – em última análise – procurou submarinos alemães.

Em Junho de 2011 regressou às Lajes numa visita patrocinada pelo programa “Heroes Return”, apoiado pela lotaria do Reino Unido. O programa paga viagens aos veteranos de guerra que queiram regressar aos locais onde. Neste caso ele também contou com a colaboração local das forças aéreas de Portugal e dos Estados Unidos.

Depois da visita tive a oportunidade de lhe enviar algumas perguntas por e-mail…

Aterrem em Portugal: Porque quis voltar aos Açores?

Ted Hedges: Com 19 anos era engenheiro de voo no terceiro Boeing Flying Fortress que aterrou na pista relvada das Lajes. 

Nos nove meses seguintes conheci e vivi entre pessoas muito pobres mas boas e felizes. Terceira é uma ilha muito bonita. Descobrimos que, por estarmos no meio de pessoas assim e de toda aquela beleza, era possível cumprirmos a nossa missão e ultrapassar o enorme stress e preocupações dos nossos voos.

Quando tive oportunidade de regressar à ilha foi um sonho que se tornou realidade. Teria a oportunidade não só de rever aquela gente simpática, mas também visitar todos aqueles lugares que eram apenas nomes em 1943.

Aterrem em Portugal: Que lugares visitou e porquê?

Ted Hedges: O primeiro sítio de visitei foi a Praia da Vitória. Uma família – agora nos Estados Unidos – recebeu-me na casa deles e foi muito simpática. Praia era uma vila e podíamos comer grandes refeições de galinha frita, com batatas, pão fresco e manteiga. 

Estava à distância de um passeio a pé das Lajes ou podíamos ir numa carroça, puxada por cavalos, pagando cinco escudos cada um. Em 1943 recebíamos cem escudos por uma Libra. Não havia qualquer tipo de sistema de transportes organizado, por isso – e para além de duas ou três visitas a Angra – só víamos o resto da ilha do ar.

A minha ajudante Eva (a enfermeira que acompanhou Ted nesta última viagem) e eu ficámos no Angra Garden Hotel, que era bastante bom e aproveitámos para ver o máximo possível da ilha.  Levaram-nos a dar um passeio e fizemos visitas ao comando das bases portuguesa e americana. Fomos bem recebidos em todo o lado e na base americana pediram-me para fazer uma gravação – de que tenho uma transcrição – cobrindo os voos operacionais de todos os esquadrões baseados nas Lajes durante os nove meses em que lá estive.

Fizemos três visitas ao cemitério de guerra britânico. Visitámos todas as campas e depositei flores na campa do meu amigo. Eva e eu colocámos depois flores junto de uma cruz em nome das famílias de todos os homens que se perderam no mar em redor das ilhas.

Passámos uma manhã no jardim de Angra. È tão bonito e as fotos que tirámos condizem com uma que tenho de 1943, onde se vêem elementos da equipa de terra que tratavam da minha Fortress, sentados junto da fonte.

Aterrem em Portugal: Deve ter tido sentimentos contraditórios durante a sua visita.

Ted Hedges: Sentimentos? Contraditórios? Sim. Visitar as campas daqueles homens, reforçou o meu ponto de vista de que a guerra é fútil, e que rouba o que de melhor as nações têm. Quanto mais velho fico mais me questiono sobre as razões porque fui poupado. Porquê eles e não eu? Que feitos poderiam ter alcançado se tivessem sobrevivido?

O cemitério é um local de grande tristeza, de “caras” e memórias que não poderão ser esquecidas, de paz e de silêncio. Na minha terceira e última visita saí em lágrimas.

A tristeza é suportável porque, durante as visitas - às localidades, à costa, a sítios históricos, aos jardins, aos museus, às igrejas e de estarmos com as pessoas - percebemos o desenvolvimento e progresso que aconteceram desde o fim da II guerra mundial. O sacrifício feito por aqueles homens assegurou que a Terceira tivesse tempo e oportunidade para se transformar no sítio lindo que é hoje.

Aterrem em Portugal: Há algum momento, durante o período em que esteve na RAF nos Açores, de que guarde uma memória mais forte?

Ted Hedges: Esta é uma questão difícil. O livro do Robert está cheio desses momentos especiais. A primeira imagem da terceira, enquanto voámos sobre o vale verde que ia ser o nosso aeródromo. A nossa primeira perda e a busca pelo avião. O momento em que tomámos consciência de como o clima mudava de mau para péssimo rapidamente. Vermos o nosso e pequeno monomotor Walrus (hidroavião de busca e salvamento) a utilizar toda a pista - com o vento de frente - fazendo com que aterrasse quase de marcha-atrás. Houve tantos momentos.

Aterrem em Portugal: tem alguma memória especial relacionada com a população portuguesa?

Ted Hedges: Deixei a Terceira em Julho 1944 com muita pena. Todas os portugueses que conheci eram felizes, simpáticas e gentis. Tive a sorte de conhecer melhor duas famílias. A primeira era a da senhora que me lavava a roupa. Tinha duas filhas e a mais velha estava quase a casar-se. Ela apresentou-me a uma família muito influente de Praia da Vitória e era bem-vindo na casa deles, sempre que tinha tempo livre. 

Julgo que o pai era mestre-escola. Tinha três filhas. A Maria de Lurdes, a Conceição e a Ana Maria. Souberam que eu ia casar na licença seguinte. Depois da minha futura mulher me enviar uma fotografia do vestido de casamento que gostaria e as medidas, elas fizeram o vestido. Quando voltei a casa, para casar, o vestido servia-lhe na perfeição.

Continuei em contacto com essa segunda família e todas as raparigas vivem hoje nos Estados Unidos.



Ted Hedges visitou o cemitério inglês nas Lajes, depositou flores na campa do amigo Joseph “Rocky” Boudreault e prestou homenagem aos homesn que se perderam no mar em redor das ilhas. (Foto Eva Jones)


Uma missão contada por Ted

Numa das questões pedi ao Ted que me contasse como era o dia-a-dia dele nos Açores. Não foi a primeira vez que alguém lhe perguntou isso… 


Ele pediu uma ajudinha ao amigo Robert Stitt (ver aqui).


Robert – autor do Livro ““B-17 in Coastal Command” (ver aqui) – colocara a mesma questão a Ted antes de mim… e obteve uma resposta muito completa e longa.


Robert foi simpático e decidiu enviar-me uma parte do seu livro – a transcrição de uma missão contada por Ted – e autorizou-me a utilizar o que quisesse. Levei a séria a oferta e abusei um pouco… mas as palavras de Ted pareceram-me muito valiosas.


Cortei algumas partes – estão assinaladas – para encurtar o texto, mas os créditos das próximas linhas pertencem obviamente a Ted Hedges e a Robert Stitt.


Agradeço a ambos pela cooperação.


Ainda antes de passarmos directamente às palavras de Ted fica alguma informação.


Duas esquadrilhas de B-17’s – o 206 e o 220 – chegaram aos Açores em Outubro de 1943. Ambos tinham 18 tripulações de oito homens cada uma.


As tripulações – conhecidas pelo nome do comandante, normalmente o piloto - eram inseridas num quadro operacional onde entravam num sistema rotativo. Quando a tripulação chegava ao topo do quadro sabia que iria na missão seguinte.


Sempre que um avião no topo da lista descolava, a tripulação do seguinte já estava reunida. Se existisse um pedido de socorro seriam os primeiros a partir.


Duas horas antes de levantar voo, já estariam de pé para a higiene matinal, comer e receber instruções. 

Depois seguiam para o avião…


Dito isto, fica a descrição de Ted Hedges.

Ficámos a saber que a nossa missão é dar cobertura a um comboio, com cerca de uma centena de navios, que partiu do Canada para o Reino Unido. (…)

O nosso comandante, Brian Reuter, faz as últimas verificações junto dos tripulantes e dirige-se para pista. Como engenheiro de voo estou completamente desprotegido entre os dois pilotos, com os braços enrolados em redor das placas de blindagem presas à traseira dos assentos deles. O meu destino, em caso de acidente, é um voo de duzentas jardas pelo vidro da frente. (…)

Pesamos 56,000 libras… temos seis mil libras de peso a mais… e tenho quatro motores que têm pouco mais de 1000 cavalos cada um, no total de 4100 cavalos. Das nossas 26 toneladas, pouco mais de dez são o peso do combustível e cerca de cinco munições e explosivos. Quando ocupamos as nossas posições de partida sabemos que, se falhar um motor, acabamos certamente mortos… por isso enquanto não ouvíamos o “clunk” do trem de aterragem a fechar, estamos sempre a fazer contas às nossas possibilidades.

(…)Não temos uma altitude certa para as nossas patrulhas, mas nunca voamos acima dos 3 mil pés. Os nossos sacos de pára-quedas estão amontoados na parte traseira da cabine do rádio, na zona de bombordo, porque nunca nos preocupamos em colocá-los junto ao corpo. Não há um serviço de apoio aos pára-quedas nas Lajes e suspeito que eles não funcionariam se precisássemos deles. Durante meses, e enquanto não são construídos os hangares Nissen, os nossos equipamentos ficam no chão, na terra, nas nossas tendas.

A partir deste momento o navegador está continuamente a fazer cálculos. Os dois pilotos vão manter-se nos seus lugares enquanto o resto da tripulação, incluindo o engenheiro de voo, mudam de posições a cada hora. (…)

No caso de uma acção anti-submarina ou uma emergência, o operador de rádio/artilheiro mais veterano assume o controlo do rádio, o engenheiro de voo faz o que for pedido pelo comandante e as posições das armas são preparadas para todas as situações… a torre do topo é designada como “controladora de fogo” no caso de sermos atacados por um avião inimigo.

Levantámos às 5 horas da manhã e ainda é noite. (…)

Lembrem-se que nos dirigimos para o meio do Atlântico. Não temos satélites ou a super-tecnologia de hoje. O nosso navegador tem apenas os seus lápis, um sextante, bússolas, um relógio muito preciso, e a fé dos seus camaradas que acreditam que, nas próximas 12 ou 13 horas, a sua matemática e as linhas que desenha num mapa vão estar correctas.

Esperamos encontrar o comboio por volta das 9 H, o que a uma velocidade de cerca de 150 nós por hora, quer dizer que vamos estar a cerca de 600 milhas náuticos da base. Estamos alertas para qualquer alerta nos intercomunicadores, por isso apenas trocamos instruções essenciais uns com os outros. (…)

Todos os 15 minutos após a descolagem o navegador fornece, ao operador de rádio, a nossa posição para que este a transmita para a base. Como sabem a hora da nossa partida, as mensagens fixam a nossa posição aproximada a cada quarto de hora, para que eles possam calcular onde estamos nos 15 minutos seguintes. (…)

Já deveríamos estar a ver o comboio, mas o tempo está a mudar com o tecto de nuvens muito baixo e a chuva a cobrir a superfície marinha. O comandante e o navegador têm uma breve conversa e têm a certeza de que estamos no sítio onde o comboio deveria estar, mas não o conseguimos encontrar. Decidimos realizar uma busca e voamos desenhando quadrados imaginários sobre o mar, mas sem sucesso. 

O comandante pede depois para fazer uma busca por radar que supostamente cobre uma área de 60 milhas…, mas mais uma vez nada. Só existe mais uma possibilidade e chamamos o nosso operador de rádio sénior Joseph “Rocky” Boudreault.





 Joseph “Rocky” Boudreault conduziu a Fortress até aos Açores nesta missão.
O operador de rádio está sepultado no cemitério da base das Lajes. Faleceu num acidente pós-descolagem da Fortress "FK206" que aconteceu no dia 4 de Dezembro de 1943.







(…) Ele transmite o nosso sinal de identificação codificado, procura uma resposta da outra Fortress e consegue realizar o contacto. Ele sabe que estamos a aproximar-nos porque o sinal do outro avião vai ficando mais forte. Finalmente temos contacto visual com o outro aparelho. Utilizamos depois a “Aldis Lamp” (uma lâmpada de sinalização) para comunicar em código morse.

Juntamo-nos ao comboio às 9.45 horas, quase quatro horas e 45 minutos depois de descolarmos. O nosso avião substituto só deve chegar por volta da uma da tarde, por isso temos ainda três horas de escolta pela frente. 

A nossa primeira tarefa é voar sobre o comboio e contar os navios para perceber se tiveram algumas perdas ou há retardatários. 

Comunicamos com o comandante da frota e somos instruídos a cumprir um plano de cobertura. Ficamos a saber que o comboio mudara de rota para evitar uma concentração de submarinos. Em relação à rota inicia desviaram-se cerca de 70 graus para bombordo e navegaram a 15 nós durante mais de quatro horas.

(…)

Estamos no ar há cerca de oito horas e esperamos a chegada do avião que nos vem substituir. O tempo está a piorar e começa a ser violento estar dentro do avião. Abana por todo o lado. O poder do mar assusta-me. Olhei lá para baixo, para o comboio, e vi navios de 40 mil toneladas enterrados em água até à ponte e depois ficarem com a quilha á mostra… os navios mais pequenos parecem desaparecer por completo. (…)

O operador de rádio diz ao comandante que recebeu uma mensagem a informá-lo de que o avião substituto foi chamado de volta, tal como nós. O tempo nas Lajes está a fechar e poderemos ter problemas na aterragem. O comandante do comboio é avisado que vamos partir e que não seremos substituídos…

(…)

A nossa preocupação aumenta quando ouvimos o piloto e o navegador a falarem da impossibilidade de determinar correctamente a velocidade do vento e a deriva do aparelho nos últimos 90 minutos.
Estão marcadas duas localizações desde que deixámos o comboio. Uma é baseada na nossa posição quando encontrámos os navios e a outra foi-nos dada pelo navegador do comboio. A última deve ser a mais a correcta, mas a impossibilidade de calcular a deriva aplica-se às duas marcações, o que torna ambas suspeitas. As duas indicam, no entanto, que devemos estar a cerca de sessenta milhas náuticos da base.

O comandante ordena ao “Rocky” que ponha a funcionar o sistema de radar para tentar apanhar o sinal de rádio da base das Lajes… mas só ouvimos silêncio em vez de um relatório positivo… parece que passa um ano até que ouvimos o “click” do intercomunicador: “Radar para comandante; sinal à nossa frente; 10 graus a bombordo”. O operador pede um ajuste ligeiro à esquerda até centrar o sinal que vem da base.

Sabemos que as Lajes estão sessenta milhas à frente, mas estamos num banco de nuvens denso, a três mil pés, e a aproximarmo-nos da base que tem uma montanha com altura de 3000 pés - de um lado da pista - e um monte de 500 da outra…

Temos de chegar perfeitamente alinhados ou as coisas podem ficar feias. Vamos fazer uma aproximação BABS, uma manobra exigente que obriga a uma absoluta cooperação piloto e operador de rádio.

Chegamos às Lajes, que não conseguimos ver, e descrevemos círculos a uns seguros quatro mil pés. “Rocky” começa a receber os sinais BABS enquanto Brian voa o aparelho seguindo um conjunto de instruções do rádio operador e de um pequeno instrumento que tem duas agulhas cruzadas. 

A tripulação toma as posições de aterragem enquanto realizo as últimas verificações de segurança, para ter a certeza que não existe nada solto que possa voar, caso a aterragem seja mais violenta… e depois tomo a minha  posição entre os pilotos.

Tudo está pronto. “Rocky” guiou-nos directamente sobre a ilha e as agulhas cruzadas dizem-lhe que nos desviámos do centro da pista. Temos confiança total nas capacidades de Rocky e de Brian. Eles têm de seguir uma rotina precisa, cronometrado ao segundo, constantemente ajustado às instruções de Rocky.

Uma última viragem deve alinhar-nos com o centro da pista e começamos a descer em pequenos solavancos. Quando o co-piloto consegue vislumbrar a pista o piloto ordena “descer trem”.
Segue-se: “Flaps para baixo”e “velocidade”. Daqui para a frente digo constantemente a velocidade a que vamos. Passamos os mil pés e ainda não saímos das nuvens. Setecentos pés… quinhentos pés… ainda não conseguimos ver a pista. 

Rocky faz um pequeno acerto aos 400 pés e a qualquer momento podemos ter de acelerar e subir para uma zona mais segura.

De repente, à nossa direita, conseguimos ver as luzes da pista. Com uma viragem para a direita e mais uma correcção estamos alinhados. reduzimos a potência e a velocidade cai. Estamos a poucos pés de tocar na pista. Um toque leve e ouve-se um “thumb” seguido do matraquear das placas da pista enquanto rolamos sobre elas e travamos o aparelho. Aterrámos Às 17.45 horas. Doze horas e 45 minutos depois de termos descolado. 15 horas e 15 minutos depois de termos acordado.

(…) Quando subimos para o camião, o nosso capitão fala por todos nós: “Obrigado, Rocky”. Ninguém tem nada a acrescentar.

Carlos Guerreiro

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