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terça-feira, 18 de dezembro de 2012

Lisboa, destino do naufrágio da guerra

Este é o primeiro dos três artigos publicado na PM e assinados por Walter Lucas e que levariam à sua expulsão nos princípios de 1041.

O jornalista explicaria mais tarde que tinha escrito apenas um longo artigo, que o jornal terá decidido dividir em três partes distintas.

Os títulos, as entradas e os entretítulos também são da responsabilidade dos editores do periódico.

Foi publicado no dia 4 de Dezembro de 1940 e traça um retrato de Lisboa e dos portugueses, faz um resumo das histórias do país durante os descobrimentos e desde os princípios do século XX, até aos anos 40. Refere a chegada de milhares de refugiados e deixa ainda algumas reflexões sobre a situação militar…


PORTUGAL TEM DE DEPENDER DA MARINHA INGLESA

O último elo livre entre a Europa e as Américas.
Portugal torna-se campo de batalhas secretas de propagandas.
Por W.E. Lucas


Lisboa: Diz-se que Lisboa é a única cidade na Europa onde uma pessoa pode ser atropelada por um carro no passeio. Não nos devemos também esquecer disto ao passarmos pela rua do arsenal ou ao descermos a R. de S. Pedro de Alcântara onde os salva vidas do eléctricos quais roçam, como o carro de Bodicea, pelos tornozelos dos peões.

Há também outras singularidades nesta linda cidade que se aglomera sobre as suas sete colinas nas margens do Tejo. Carros puxados a mulas e bois passam fazendo barulho pelos sítios em que se encontram lojas da moda. Peixeiras, transportando à cabeça as canastras gotejantes, gritam os seus agudos pregões tanto pelas ruas dos ricos como dos pobres. Burricos, muito carregados com cabazes cheios de hortaliça, vagueiam pacientemente por entre o tráfico enquanto os seus donos regateiam e discutem com os fregueses.

Durante todo o dia e quási até ao romper da manhã, os cafés do Rossio e por toda a parte da cidade estão cheios dos seus frequentadores que não se cansam de discutir. Rapazitos, velhos andrajosos, rufiões roucos e de barba por fazer metem à cara de quem passa os bilhetes da Lotaria. Automóveis buzinando fortemente e produzindo sons ásperos passam a toda a pressa pelas ruas mais estreitas de tal modo que, diz-se, o sr. Malcom Campell afirmou que guiar em Lisboa era coisa muito perigosa para ele.

Lisboa é um cidade de barulho, de barulho tão insistente que os ruídos de New York ou de Londres, comparados com ele, parecem o silêncio da morte.


Duas Revoluções por mês

Antes de 1926 pouco acontecia em Lisboa além das revoluções de 15 em 15 dias. Desde 1926 e depois da subida ao poder do dr. Salazar quási não tem havido perturbações desta natureza para quebrar a monotonia dos dias calmos. O Ditador de Portugal trocou o matraquear das metralhadoras e o estampido ocasional dos canhões de um forte ou de um barco de guerra surto no Tejo pela música de bandas ou pela marcha de disciplinados Legionários e Filiados da Mocidade.

Walter Lucas diz que os portugueses vivem "de uma recordação exagerada do seu grande passado".
(Foto: Revista do Ar, Novembro de 1937)

Há outras transformações notáveis entre aquele tempo e o dia de hoje. As ruas pavimentadas de pedras foram substituídas em muitos pontos por estradas alcatroadas; às disputas de deputados rivais sucedeu o aplauso bem ginasticado da Assembleia Nacional. Os bairros pobres que se formaram no decurso séculos foram substituídos por estradas novas e outras coisas agradáveis à comunidade.

Estas coisas são ainda novas em Portugal e uma caus de orgulho e admiração para os portugueses. Mas ainda hoje muitos dos mais velhos se sentam no cafés e conspiram em voz alta, enquanto os mais novos, lembrando o grande passado de Portugal, olham em frente com esperança para o futuro do seu país.

Durante os últimos catorze anos tem havido uma corrente íntima ou interior de expectativa. Portugal tem estado a readquirir gradualmente a sua dignidade nacional, muito embora mantena ainda velhos costumes do seu povo.

Com a rapidez de um tufão tudo isto mudou em Maio deste ano. Desde esta data Portugal, e especialmente Lisboa, tem estado a tomar com espantosa rapidez um vulto internacional de tal ordem que hoje, quatro meses depois, apresenta-se como qualquer coisa de extraordinário na Europa - É como um parente pobre que de um momento para outro se viu visitado por todos os seus primos ricos, alguns dos quais viessem pedir migalhas da sua mesa frugal.

A tragédia da Europa trouxe às ruas de Lisboa uma excitação passageira embora real, e ao seu povo uma enorme prosperidade. O avanço constante das legiões nazis deu a Portugal uma posição proeminente no mapa diplomático.

Assim como aquela Bloody Mary de Inglaterra, que tinha Calais impressa sobre o coração, muitos polacos, checos, alemães, holandeses, belgas e franceses gravarão o nome de Portugal na sua memória.

Depois dos caminhos cortados pelas bombas e das cidades sem luz dos Países Baixos e da França e da fome de Espanha, este país pacífico e sorridente e a comparativa quantidade de ruas iluminadas devem ter-lhes parecido terra de promissão.


Uma torrente de Miséria

Era uma vista extraordinária e patética a da fronteira portuguesa. A corrente humana juntava-se ali como se junta a água numa represa. As filas de carros, bicicletas, de peões e comboios carregados de gente estendiam-se pelas estradas do lado espanhol por milhas de comprimento.

Portugal encontrava-se pela primeira vez em face de um dos seus principais problemas de guerra. Como é que se devia fazer face a esta repentina invasão? A massa humana era constituída por todas as camadas sociais e continha toda a espécie de desventurados.

Havia Rolls Royce e Cadillacs cujos donos traziam consigo as suas recheadas bolsas. Automóveis microscópicos de todas as marcas, muitíssimo carregados de seres e bagagens, transportavam pessoas cujos magros pecúlios já tinham sido gastos.

Refugiados a pé e de comboio, que tinham passado meses a fugir dum país atacado para outro e somente ouviam o passo implacável do inimigo atrás de si, eram quais fracas e enlameadas sombras do que tinham sido.

Era um problema de uma magnitude tal que nenhuma caridade individual podia resolver. Era um problema de repercussões internacionais que pôs todos os ministérios dos aliados em Portugal a trabalhar durante horas extraordinárias e que mudou todo o aspecto de Lisboa.

Os restos do naufrágio da guerra tinham sido arrastados para esta última e calma fortaleza da paz na Europa ocidental e a ameaça da guerra avançou muitas léguas na direcção da costa que quási olha o Continente Americano.

As causas que forçaram estes refugiados a transpor rapidamente a fronteira foram as mesmas que rapidamente fizeram com que Portugal ocupasse uma posição proeminente no mapa da Europa. Os próprios portugueses ficaram surpreendidos e não pouco perplexos quando o interesse internacional se debruçou sobre eles.

Por toda a parte os estrangeiros que se tinham acostumado a endereçar cartas para «Lisboa, Portugal, espanha» começaram a pegar nos seus Atlas e a estudar a geografia deste país rapidamente tornado importante. Ali encontraram eles uma unidade nacional na orla mais ocidental do continente europeu, possuindo o único grande porto atlântico que não está nas mãos dos alemães.


O último elo existente

Lisboa é, de facto, tanto por mar como pelo ar, o último elo existente entre a Europa e as Américas. Tornou-se a garganta de passagem de todos os refugiados que tentam salvar-se, de todo o correio que sai ou entra na Europa, das chegadas e partidas de diplomatas e generais, propagandistas e homens de negócios. É também uma das poucas fendas na muralha do bloqueio inglês. É teatro de inúmeras hostilidades secretas que não deixam de ser ásperas pelo facto de não derramarem sangue.

Foi em 1240 que se fundou Portugal e desde então manteve intacta a sua unidade nacional, à excepção de sessenta anos sob o domínio de Espanha, de 1580 a 1640. Isto faz de Portugal a unidade nacional mais antiga da Europa.

Decorrido um século após a fundação de Portugal, os portugueses foram, durante dois séculos os “leaders” do mundo Europeu. Os seus homens de ciência prepararam o caminho e os grandes marinheiros e capitães abriram horizontes novos à Europa e deram novo curso às energias das gentes europeias. Antes de Colombo ter concebido a sua viagem à India e que o levou à América por engano, os irmãos Côrte Reais tinham já deixado vestígios em Maryland.


Época Áurea

Além dos grandes descobridores, centenas de outros exploradores, aventureiros e padres portugueses penetraram no interior dos continentes africano e americano abrindo vias de comércio e estabelecendo a cultura portuguesa.

Foi uma idade áurea de progresso mas que para os portugueses terminou quási tão rapidamente como havia começado. O esforço físico violento destas façanhas esgotou o pequeno povo enquanto as grandes riquezas das conquistas minaram as forças morais e intelectuais dos seus dirigentes.

O artigo de Walter Lucas assegura que as espingardas portuguesas são de um  ultrapassado modelo alemão.
(Foto: Exercício Militar de Novembro  de 1940, revista Defesa Nacional, Deazembro de 1940)

O facho que caiu das mãos enervadas dos portugueses foi apanhado pelos holandeses, pelos franceses e ingleses, e assim se formou o mundo que nós hoje vemos.

Pelos fins do século XVII Portugal tinha deixado de ser uma grande potência. No oriente apenas alguns farrapos ficaram do rico manto do Império. A África continuou abandonada.

Foi somente no Brasil, onde as riquezas podiam ser facilmente adquiridas, que os portugueses mostraram alguma vitalidade. Mas no decorrer dos tempos mesmo o Brasil se separou da Mãe-Pátria e os portugueses foram atirados principalmente para Moçambique e Angola.

Portugal sofre de uma recordação exagerada do seu grande passado. É simplesmente natural uma vez que o contraste entre os dias de D. João II e os registos da história mais recente é de ordem a encorajar a mentalidade que vive no passado. Isto parece, porém, um pouco ridículo aos olhos anglo-saxónicos.

As Festas Centenárias deste ano gritadas em altissonantes elogios próprios. Não contentes com a sua contribuição, todas as espécies de outras realizações foram juntas à lista de maneira que os portugueses surgem como uma espécie de super-homens.

Entretanto por detrás das fronteiras granadas e bombas estão abrindo um caminho por onde, se for necessário, marcharão as legiões conquistadoras. Contra estas o orgulho de Portugal deve desaparecer uma vez que o seu poder de resistência é menor do que o da maior parte dos outros países pequenos da Europa.

Porrtugal está hoje tanto sem defesa como tem estado durante os últimos duzentos anos da sua história. Não tem nada que pudesse opor às forças mecanizadas da guerra moderna. Não tendo nenhuma indústria própria, o seu equipamento tem sido adquirido em países que têm armas disponíveis. Como é natural, antes da guerra a Alemanha era o principal agente no mercado português de armamento. Câmbios estrangeiros eram valiosos para ela. A maneira mais fácil de as obter era impingir espingardas, canhões, aviões e equipamentos de segunda e terceira mão ao mais fraco dos pequenos Estados Europeus.

O exército português que podia contar quinhentos mil homens está aramado com espingardas de um velho modelo alemão. Para a defesa do país contra ataques aéreos há uma bateria de canhões antiaéreos fornecida pela Inglaterra e alguns aeroplanos alemães antiquados.

As suas baterias de costa são constituídos por canhões comprados à Inglaterra depois da guerra sul-africana. Campos de aviação, quer militares quer civis, são muito poucos.

Hoje, como no passado, a única protecção que Portugal poderia esperar contra a invasão das suas fronteiras terrestres deve vir da Inglaterra. A certeza desta protecção tem sido a âncora da política externa de Portugal quási sem interrupção desde há mais de quinhentos anos para cá.

É significativo que enquanto há um ministro da Guerra português e um Ministério da Guerra, não há nenhum secretário da Marinha posto que o Império Colonial de Portugal dependa do mar no que diz respeito à sua segurança. O almirantado português está em Whitehall.

(PM, 4 de Dezembro de 1940)

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