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sexta-feira, 31 de julho de 2015

O processo

Culpados. Todos culpados de desobediência a ordens dadas por um oficial superior. O tribunal marcial do Corpo de Aeronáutica do Exército dos EUA (USAAF) não teve dúvidas sobre a culpabilidade dos aviadores que, em Julho de 1943, se recusaram em Lisboa a entrar num navio, pronto para zarpar em direcção a Gibraltar, com o objectivo de serem reintegrados em unidades militares.

Os aviadores Jack Gompf (1º à esquerda) e Ralph Sebring (terceiro) em Elvas com os estudantes portugueses Nuno Silva e Pina Madeira,

Os sete aviadores tinham aterrado em Portugal - por razões diversas - em princípios de 1943, aos comandos de caças "Aircobra". Após alguns meses em Elvas, na condição de internados, receberam ordens para se dirigirem a Lisboa. A 7 de Julho, e depois de alguns dias na capital, foram levados ao porto para serem alvo de evacuação, num sistema que tanto americanos como ingleses estavam a utilizar regularmente para retirar os internados que tinham no país.

A operação, executada num semi-secretismo, contava com a íntima colaboração das autoridades portuguesas que, por esta altura, mantinham dezenas de aviadores aliados internados em Elvas. O adjunto do adido militar na legação americana em Lisboa, tenente-coronel da USAAF Seymour Pond, era portador das ordens de saída e também coordenador aliado neste caso.

A princípio tudo correu com planeado. Nove pilotos embarcaram em botes na direcção de três cargueiros britânicos que se encontravam no porto, mas depois assistiu-se à recusa. O primeiro-tenente Richard Savoy e os segundos-tenentes Richard Alexander, William Allen, Harold Beedle, John Bishop, Jack Gompf e Ralph Sebring negaram-se a fazer o transbordo e regressaram a terra. Apenas os segundos-tenentes Charles Botvidson e Frank Atkins aceitaram fazer a viagem e, mais tarde, seriam chamados como testemunhas no processo.


Razões para uma recusa

Não são claras as razões que levaram a esta decisão dos pilotos e existem, pelo menos, duas versões distintas ou talvez complementares. Num diário (nunca publicado) onde Jack Gompf compilou as memórias de guerra, este explica a situação de forma bastante simples.

A ordem de embarque chegou depois de estarem vários dias em Lisboa, cidade onde passaram inclusive o 4 de Julho (Dia da Independência). Garante que ao chegar a bordo se aperceberam de que os tripulantes estavam bêbados. Dois dos aviadores terão subido a bordo para uma inspecção e confirmaram a presença nos porões e nas cabinas de dezenas de outros marinheiros, de diversas nacionalidades, ex-náufragos, também alcoolizados, festejando o salvamento e o regresso a Gibraltar. As instalações ofereceriam poucas condições de salubridade e a presença de tantos passageiros só agravava mais a situação. Foi perante a falta de condições mínimas que terão confirmado a recusa de embarcar apesar das insistências do comandante do navio e, posteriormente, de Seymour Pond que se deslocou num outro bote até junto do grupo de irredutíveis.

Outra versão da história pode ser encontrada no livro "They Called me Dixie", publicado em 1988, e da autoria de Richard Alexander. Porque tinha uma contusão na virilha e necessitava de um médico especialista, que não havia em Elvas, o aviador diz ter chegado a Lisboa antes dos restantes companheiros.

No livro a capital portuguesa é descrita como "bem iluminada e festiva de um modo decadente". A sua vivência lisboeta é descrita como uma corrida constante entre bares, festas e prostitutas. A cidade era, segundo se apercebeu, um centro de espionagem, onde se cruzava todo o tipo de gente. Esta é uma imagem desenhada e alimentada no pós-guerra com o surgimento de vários livros, relatos e filmes focados no submundo do conflito que tiveram Portugal como palco privilegiado.

O país seria também local para fazer amizades inesperadas. Alexander assegura que certa noite se cruzou com um estrangeiro que falava um inglês estranho. Tratava-se de um aviador alemão que fazia parte de um grupo, também de internados, e com os quais se foi encontrando amiúde nas jornadas seguintes.

Terá sido num desses encontros que os alemães o avisaram de que iria receber ordens de saída muito em breve, mas que não o deveria fazer, pois os navios estavam marcados como alvos da Luftwaffe. O americano assegura que mal chegou ao alojamento foi informado pelos outros que já teriam chegado as ordens.

Incapaz de se conter terá contado ao grupo o que lhe tinham dito os alemães e, depois de acesa discussão, foi decidido que cada um tomaria a decisão que etendesse e, no dia seguinte, regista-se a recusa de embarque.

Duas fotografias do livro de Richard Alexander
onde aparece ele - o último da direita -
e Charles Botvidson, o penúltimo.

É difícil perceber nos relatos de Richard Alexander onde acaba a realidade e começa a ficção. Não se trata apenas dos capítulos dedicados a Portugal. Todo o livro parece uma mistura - por vezes espalhafatosa - de factos e fantasias criadas para engrandecer e justificar as atitudes do autor.

Não existe qualquer registo de aviadores alemães internados nos meses que antecederam a chegada dos americanos a Lisboa. É, no entanto, um facto que o ataque a navios era corrente naquele ano. O período de Junho e Julho de 43 foi, aliás, de grande actividade bélica na nossa costa com diversos ataques e afundamentos. Os navios que saiam de Lisboa eram especialmente vulneráveis pois a rede de espionagem alemã instalada nos portos e na costa acompanhava as sua saídas e rotas, comunicando essas informações à marinha e à força aérea.

Nem Gompf, nem a documentação relativa ao processo referem qualquer contacto com alemães, e é impossível perceber se a informação sobre os ataques foi transmitida pelo inimigo ou é uma efabulação posterior de Alexander. É certo que houve o reencontro com Botvidson, numa unidade operacional, e este contou-lhe - segundo relata no livro - a atribulada viagem sob ataque dos FW200's Condor da Luftwaffe.

É, no entanto, verdade que, no processo elaborado pela acusação, Richard Alexander é apontado como cabecilha da rebelião.


Dividir a latrina com presos políticos

Incapaz de fazer os homens cumprir a ordem de embarque o tenente-coronel Pond entregou os rebeldes às autoridades portuguesas, nomeadamente, á PVDE que os encarcerou numa prisão que - segundo descrição de Alexander - terá sido o Forte de Caxias, local onde dividiram conversa e refeições com presos políticos.

Ao longo de cerca de duas semanas os aviadores partilharam uma cela comum e, com os restantes presos, também a latrina onde Alexander garante ter visto "os maiores ratos da sua vida". Informados pelo responsável da prisão dos direitos e deveres, adaptaram-se com facilidade. Como tinham dinheiro podiam encomendar alimentos do exterior, assegurando uma dieta mais rica que a maioria dos restantes detidos.

Conversaram com alguns dos outros detidos e recolheram informações e notícias sobre guerra e sobre Portugal, antes de voltarem embarcar, num outro cargueiro britânico, em direcção a Gibraltar. No mesmo navio seguiu também o tenente-coronel Seymour Pond. A 25 de Julho estavam a bordo de um avião para Argel, onde a 27 foram presentes ao tribunal marcial presidido pelo coronel Harold Neely.


Uma sentença incompreensível

Doze oficiais ouviram defesa e acusação durante a manhã e, ao meio dia, declararam todos os arguidos culpados. Faltava apenas ponderar a sentença que seria lida horas depois.

A acusação pedia a erradicação de Richard Alexander, tanto por este ter desobedecido a ordens, como também por ser considerado o mentor da revolta. A acusação garante que se trata de "um homem sem quaisquer princípios ou disciplina militar". Para os restantes pediam-se sentenças pesadas, que não a erradicação, para servirem de exemplo.

Quando em cima das 15 horas leram a sentença a surpresa foi total, mas os aviadores respiraram de alívio. Todos receberam uma reprimenda oficial e foram obrigados a ficarem confinados, durante três meses, à base para onde fossem destacados.

A decisão terá tido em conta diversas atenuantes, entre as quais a falta de pilotos na frente de batalha e a dificuldade de acusar os militares de cobardia, porque seis deles tinham combatido como voluntários na RAF, numa altura que a América ainda cultivava a sua neutralidade. Por outro lado surgiram também questões técnicas e burocráticas relacionados com a forma como a ordem foi transmitida e o tipo de tutela a que estariam sujeitos enquanto internados. A falta de uma inspecção militar ao navio encarregado do transporte também foi tido em conta.

Apesar destas atenuantes a pouca severidade da decisão apanhou o tenente-coronel Pond de surpresa e mesmo terá acontecido com outros oficiais. Segundo um relatório assinado pelo Adido Militar adjunto em Lisboa o Coronel Neely mostrou o seu desagrado de forma veemente logo após a leitura da decisão. A situação teria sido tão escandalosa que o tribunal foi dissolvido dias depois pelo General Spaatz, que nomeou outros oficiais para assumirem lugares no tribunal marcial.

Outras notícias indicavam que o próprio Eisenhower se mostrara inconformado com o desenrolar do processo, prometendo uma reavaliação do caso, mas pelas leituras das memórias de Gompf e de Alexander o processo ficou mesmo por ali, e ambos continuaram a carreira como pilotos no Norte de África e em Itália para onde seguiram dias depois do julgamento em Argel.

Carlos Guerreiro

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