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quinta-feira, 31 de janeiro de 2019

Tertúlia sobre o Holocausto em Almodôvar


Iniciativa do Agrupamento de Escolas de Almodôvar, dia 1 de Fevereiro, 
pelas dez da manhã no Auditório.


quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

«O homem que veio do Outro Mundo» (2)
A viagem no "Comboio Fantasma"

Publicamos a segunda parte da entrevista dada por José Agostinho das Neves em finais de 1945 ao jornalista Fernando Teixeira. Trata-se do segmento final do que foi publicado na edição de 22 de Novembro. Como já foi referido anteriormente a entrevista foi impressa em duas edições distintas do "Diário Popular" e os episódios relatados na edição do dia 23 serão transcritos brevemente neste blogue.

Primeira Página do "Diário Popular" de 22 de Novembro de 1945.
Na última semana ficámos a conhecer um pouco sobre José Agostinho das Neves e das desventuras que o conduziram aos campos de concentração franceses logo no princípio do conflito. Nesta publicação vamos acompanhar as suas memórias sobre o percurso até ao campo de Dachau na tristemente famosa viagem do "Comboio Fantasma".

Neste comboio, onde seguiam vários portugueses, reuniram-se os últimos 400 prisioneiros do campo de Vernet e outros 170 homens e mulheres vindos da prisão de Saint-Michel. A partiram para Bordéus aconteceu a 2 de julho de 1944, seguindo depois para Angoulême onde foram alvo de um bombardeamento por parte de aviões aliados. Não conseguindo seguir viagem a composição regressou a Bordéus, onde esperaram 28 dias na sinagoga da cidade antes de retomar o caminho.

Quando partiram, a 9 de Agosto, o grupo seguiu reforçado com mais prisioneiros elevando o total de deportados para cerca de 800. Pouco depois a destruição das vias obrigou-os a percorrer duas dezenas de quilómetros para fazer o transbordo para outro comboio e a viagem prolongou-se sob o sol escaldante de Agosto por entre inúmeras voltas e reviravoltas causadas por bombardeamentos, sabotagens e a fuga aos avanços aliados que tinham invadido a Normandia no dia 6 de Junho. Quando chegaram a Dachau, no dia 28 de Agosto, saíram do comboio apenas 536 pessoas...

Retomamos a transcrição:

(...)

A viagem sem fim começa

30 de Junho de 1944. Há quanto tempo não vejo gente? Nem eu sei já. À minha frente, só espectros e fardas. Fardas pretas, verdes, cinzentas. E nesse dia quinhentos homens, quinhentas sombras, os que havíamos ficado no campo, restos de todas as levas anteriores, somos reunidos para partir também. Os alemães estavam furiosos. Os planos haviam falhado. Os “outros” tinham desembarcado na Normandia. Estavam no grupo franceses, espanhóis – mutilados do guerra – alguns belgas fugidos e eu. Mal tivemos tempo de fazer uma trouxa dos nossos trapos e das nossas poucas, saudosas recordações. E partimos em camiões, escoltados pelos famosos “S.S.” que nunca tínhamos visto e eram verdadeiramente brutais. Cochichávamos uns para os outros: “Serão homens ou feras?” Nunca descobri a diferença.

Chegámos a Toulouse. Meteram-nos na Caserna Caffareli, uma vasta cela, guardada por sentinelas reforçadas. Impossível comunicar com o exterior. Apertados, 500 corpos encostados ombro a ombro, nem sequer podíamos deitar-nos. Moídos, cheios de sono, despertaram-nos na madrugada do terceiro dia, espancados pela guarda para sair mais depressa. Lançámos mão rapidamente à parte menos volumosa da nossa bagagem e corremos, noite fora, ao frio até à estação de mercadorias. Deparámos então com um comboio já formado. Quinze vagões dos de transporte de gado. Alguns já estavam repletos. Eram presos vindos de outros pontos. Repartiram-nos pelos espaços vagos. Entro no meu e leio pintado a  branco na madeira: “Lotação – 8 cavalos ou 40 homens”.

Ficamos setenta. Portas aferrolhadas, sem janelas, sem ar e sem luz, esperámos de olhos abertos, ouvidos à escuta. Começou então a grande viagem…


Dentro do vagão era sempre de noite

Horas e horas seguidas naquele monótono andamento enlouqueciam-nos. Para onde nos levavam? E cada vez era maior o silêncio naquele vagão infernal para que não se perdesse uma palavra da conversa com sentinelas ou uma indicação dos empregados dos caminhos-de-ferro. Lá dentro era sempre noite. Para contar os dias, precisávamos não esquecer que as visitas das sentinelas se faziam de manhã e de tarde. Duas, um dia. Palavras soltas colhidas aqui e ali davam-nos uma indicação: íamos para Compiegne. Mas seria verdade? As conjecturas que cada um de nós fazia não podiam convergir. E todos começámos a sentir-nos invadidos pelas apreensões mais disparatadas. Sem ar, sufocados pelo calor, começámos a deitar fora a roupa, esperançados que assim resistiríamos melhor, atenuaríamos a transpiração. O cheiro de 70 homens que não podiam lavar-se era nauseante. E o sol – que belo sol devia gozar-se lá fora! – queimava, transformava os vagões em fornalhas.

Ninguém podia aguentar mais, alguns começavam a perder os sentidos. Não, não podíamos. Quási nus, lábios secos, transfigurados, nós, os que ainda estávamos de pé, começámos a gritar e a bater nas paredes. Que ao menos nos abrissem a porta para respirar. Mas não abriram. E embora o suplício fosse até então apenas de algumas já preferíamos ser fuzilados que morrer naquelas condições. Alucinados pela sede, gotejando suor, nus, sujos de poeira, a pele quebradiça, escaldante, cheia de resíduos de cimento, ao transporte do qual os vagões haviam servido antes, parecíamos personagens de um pesadelo infernal.

E o calor aumentava. E este desejo imenso de querer morrer! Se ao menos um de nós tivesse uma arma, uma faca, se ao menos um de nós tivesse forças para apertar com as mãos… Massas informes, atirados uns sobre os outros, cinzentos do cimento, avermelhados do calor e da raiva, foram-se calando as vozes pouco a pouco.

E de repente, uma chiadeira de travões e de metais que chocam. E vozes que se aproximam. E um ruído de portas que se abrem. Agora, é no nosso vagão. Ficámos todos de olhos pregados na porta que é aberta com estrondo. A princípio, vemos só a luz do sol que nos cega. Depois, distinguimos as sentinelas e uns homens que não conhecemos e olham para nós, indiferentes, armados de granadas e metralhadoras. Dos 70 que éramos no vagão, só cinco estão de pé e são os primeiros a descer e a ajudar os outros.


O medo de não ter forças para viver

Foi então que me enchi de medo, de um medo feroz que mal podia exteriorizar-se porque eu nem sequer conseguia abrir a boca para falar.

É que eu tinha à minha frente, outra vez, a vida, o ar livre, talvez uma lata de água. E eu que gritara, que me horrorizara com a ideia de que podia morrer ali para um canto sem ar e sem luz, perdera de repente todo o desejo, todas as possibilidades de reagir. Perdera a esperança. E queria morrer. Não era capaz de arredar dali. Enchi-me de medo. Que iria eu fazer daí para diante? Um dos homens armados de metralhadora subiu e deu-me um pontapé. Ainda bem. A dor fez-me reagir. Pus-me de pé. Cambaleei, agarrei-me a ele. Levei um safanão. Cheguei à porta e desci.

Estendi-me ao comprido no talude. Vieram então os assistentes da Cruz Vermelha. E, a pouco e pouco, aquele exército de fantasmas, lavados, reanimados com um pedaço de pão, um tomate cru e uns goles de água, começou a pôr-se de pé. Vieram logo ordens enérgicas. E os homens da Cruz Vermelha foram proibidos de nos alimentar. E fizeram-nos subir, de novo, para os vagões. Mas as portas não foram fechadas completamente. Uma fresta de cada lado, uma em frente da outra, seria uma corrente de ar fatal para quem não tinha roupa sobre a pele. Mas era uma corrente de ar. Estabelecemos então turnos para respirar melhor. E de cinco em cinco minutos (pouco mais ou menos, pois nenhum de nós tinha relógio) um grupo ia encostar a boca à fresta da porta. Depois esperámos. Quando o comboio se pôs em marcha, já era noite. Soubemos mais tarde que já não podendo seguir o itinerário previsto, por as linhas estarem cortadas pelo “Maquis”, haviam decidido levar-nos para Perigueux. Chegados a Bordéus, e após alguns instantes de paragem que nem sequer deram tempo a que a Cruz Vermelha nos socorresse de novo o comboio pôs-se em marcha lenta. A meio da noite, parámos. O comboio tinha de retroceder. As vias estavam interceptadas. E voltámos a Bordéus, em direcção a Angoulême. Aí chegados verificou-se que a estação estava destruída pelos bombardeamentos.

O comboio foi desviado para uma linha de mercadorias, à espera que os “rails” fossem reparados. Abrem-nos então as portas e mandam-nos sair aos cinco de cada vez. Num pequeno regueiro que corria ao fundo do valado e a todo o comprimento do comboio, via-se então uma fila de desgraçados nus e sujos, de barba crescida e cara congestionada pelo sofrimento, procurando aliviar-se da tortura de uma necessidade tanto tempo contida. Para refrescar os lábios tumefactos pela febre, alguns dos infelizes arrancavam as ervas que tinham ao alcance das mãos. Outros, para quem é demasiado atroz o suplício da sede, não resistem à tentação da água que corre no mesmo regato onde os companheiros se encontram agachados. Transtornados, sem discernimento. Bebem-na, sôfregos. Recuo para o vagão, cheio de sede, endoidecido por aquela visão.


Um ataque inesperado, na noite

O comboio parte. Para onde? Sabe-se lá. E ainda não comi – nem sequer o pedaço de pão da Cruz Vermelha, que não houve tempo de o distribuir a todos.

Em Parcoul-Mediac, nova paragem. Depois no silêncio, ruídos estranhos e uma gritaria desusada. São aviões ingleses, de caça, que fazem um barulho infernal. Os soldados da escolta aferrolham-nos as portas e dispersam-se pelos bosques próximos. E assestam sobre os vagões as metralhadoras para que não possamos evadir-nos. Espreitamos pelas frinchas do vagão desconjuntado. É verdade, terrivelmente verdade. Por cima, os aviões. Aos lados, os alemães, às espera que um de nós arrombe a porta para fugir. Os aviadores ingleses que haviam visto fugir os alemães tomam o comboio por um transporte de tropas inimigas. E baixam. E abrem fogo. E todo o comboio, de uma ponta à outra, é esburacado pelas balas explosivas. Aterrados, impossibilitados de sair, vemos a trajectória luminosa das balas descrever caprichosas e alucinantes fantasias. Vamos morrer todos. E, ao meu lado, um velho, de grandes barbas, chora. Um outro lá ao fundo, grita. Estará ferido?

Não sei como surgiu aquela ideia. De repente, uma camisa branca, outra azul e outra vermelha são atadas a um pau. Passa-se este simulacro de bandeira pela fresta do vagão. Quando voltam à carga, os aviadores percebem o sinal. E deixam-nos em paz.

Os gritos do feridos começam a ser horríveis. Há três mortos e uns vinte em estado grave. Alguns são evacuados para o hospital de Angoulême.

E um novo dia amanhece.

Reportagem de Fernando Teixeira, in Diário Popular, 22 de Novembro de 1945

--- Leia aqui as PARTE 1PARTE 3PARTE 4.

quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

"Debaixo do Céu" no Cinema Ideal

O documentário "Debaixo do Céu", tem estreia marcada para hoje no Cinema Ideal, em Lisboa. O filme faz um retrato do que passaram os judeus que durante a II Guerra Mundial tiveram Lisboa como porta de fuga de uma Europa assombrada pelo nazismo.


Pessoalmente foi um dos projectos mais interessantes em que me envolvi nos últimos anos e o trabalho e a sensibilidade do Nicholas Oulman transformaram este "Debaixo do Céu" num filme que merece ser visto pelas histórias que conta, pelas imagens que reúne, pela forma como está editado, pela brutal serenidade com que somos confrontados com um passado que, na realidade, foi ontem.

Obrigado ao Nicholas e ao Paulo Sousa pela coragem...

Mais logo, às 19.30 horas no Cinema ideal.

«O homem que veio do Outro Mundo» (1)
Uma vida que a guerra interrompe

Numa quinta-feira, 22 de Novembro de 1945, o jornal Diário Popular, inaugurado três anos antes, trazia na primeira página e em grandes parangonas a história de um português que estivera preso em Dachau, um dos tristemente célebres campos de concentração nazis que até em Portugal tinham sido notícia.

O homem chamava-se José Agostinho das Neves, um dos milhares de portugueses que se encontravam em França nos anos 30 - por razões políticas ou económicas - e a quem a II Guerra Mundial tinha marcado de forma indelével. A reportagem, assinada por Fernando Teixeira, prolongava-se por quatro longas páginas em duas edições distintas, um texto que iremos transcrever aqui nas próximas semanas.

Painel sobre José Agostinho das Neves na exposição dedicada aos
"Trabalhadores Forçados Portugueses no Terceiro Reich".
A fotografia maior é uma ampliação de uma das imagens e
sobreposta ao painel pelo autor deste blogue.
A vida deste prisioneiro português, um de várias centenas como se percebeu recentemente, foi reconstituída nos últimos anos por trabalhos como os da jornalista Patrícia Carvalho e, especialmente, pela equipa de historiadores liderados por Fernando Rosas que se dedicou ao estudo dos "Trabalhadores Forçados Portugueses no Terceiro Reich". É essencialmente com recurso ao material deixado por estas duas fontes que o "Aterrem em Portugal!" acrescentará alguma informação adicional na introdução dos diversos artigos.

Neste trecho José Agostinho das Neves relata a forma como vivia em França e o primeiro período como prisioneiro num campo de concentração francês. Trata-se da transcrição de cerca de metade da primeira reportagem enviada por Fernando Teixeira. O restante, onde se relata o transporte de França para Dachau num comboio - que ficaria conhecido como o "Comboio Fantasma" - será transcrito na próxima semana.

Da vida de Neves foi possível apurar que nasceu em Lisboa em 1905, tendo-se assumido como um activista político de tendências anarquistas, razão porque se terá exilado em França durante os anos 20 do século passado. A sua situação económica era considerada frágil, trabalhando na construção civil e recorrendo por vezes à assistência para se conseguir manter a si, à mulher e à filha.
Em Dezembro de 1939 a sua militância política colocou-o sob suspeita da polícia francesa que o pretendia deportar. Preso em Maio do ano seguinte passaria quatro anos em Vernet até ser levado para Dachau em 1944.

Segue-se a transcrição da primeira parte da reportagem, que será a única da época a contar a história de um português nestas condições..


O Homem que veio do Outro Mundo
Um português que esteve em Dachau até ser libertado pelos americanos dá uma impressionante entrevista ao “Diário Popular”

Estava diante de mim, confuso, tímido, alegre, os olhos pequenos a bailar atrás dos óculos. Parecia uma criança perturbada com a presença de um adulto. E, afinal, é bastante mais velho que eu…
Tínhamos-nos encontrado há pouco tempo e éramos já amigos. Amigos, sim. Mal nos conhecíamos, mas éramos ambos portugueses, o acaso pusera-nos, um em frente do outro – e eu, chegado há dois dias, não conhecia alguém em Paris.

Interessei-me pela sua sorte, ouvi-o com interesse, mais de português que de jornalista. E ele tinha tanto para dizer-me… Senti bem que as suas palavras não eram para o homem dos jornais, mas para o compatriota.

Primeiro tinham vindo as perguntas atabalhoadas, doidas, a esmo: “Como está Lisboa?”; “Ainda há esplanadas na Avenida”; Quem trabalha no Nacional?”; Que livros publicou o Ferreira de Castro?”. E, a desculpar-se: “Aqui não se sabe nada. Parece que estamos nos antípodas”.

Depois, a voz tinha inflexões mais tristes e o estribilho voltava sempre igual: “de resto, comigo não admira, eu vim do Outro Mundo”. “Eu vim do Outro Mundo”…

E veio, o pobre. De um Mundo que muitos conheceram, mas do qual nem todos podem ter a paradoxal felicidade de trazer recordações. De um Mundo que foi mancha e desonra de homens, que foi expiação e vingança. De um Mundo que não poderá voltar a existir, que nós não queremos que volte – o dos campos de concentração.

Bebíamos uma cerveja pálida, sem espuma e sem pretensões. Mas ele gostava. Tantos meses sem uma gota de vinho… Depois, dividimos o maço de cigarros – portugueses! – e a conversa animou. Eu olhava-o com ternura. Os seus modos, os seus gestos, as suas palavras não podiam esconder aquilo que o dinheiro às vezes e em vão pretende arranjar: a educação e a cultura. Fiz o possível por o pôr à vontade. Ele percebeu e gostou de poder ter alguém - finalmente! – a quem contar a sua longa história.

“Eu vim do Outro Mundo”…

Deixei-o falar, olhando-o bem de frente quando sentia que procurava fazer-se acreditar e até tinha medo que o suspeitassem doido ou mentiroso, ou evitando um ar curioso quando a vergonha e a miséria afloravam à sua memória. E ele contou, longos minutos estirados naquele fim de tarde, a história sem par que viveu no cabo da Civilização.

1940. A França é invadida. Os alemães aparecem, de surpresa, em toda a parte. Um motociclista chega, às vezes, para tomar uma aldeia. O exército está em frangalhos, batendo-se os soldados, surpresos da sua sorte, até morrer. Os blindados do Reich entram em Paris. As ruas, tristes, nebulosas, sem vivalma, enchem-se de fardas verdes e “souris gris” – as alemãs que o parisiense nunca mais esquecerá.

As arcadas da Rue de Rivoli são longos mostruários de estandartes vermelhos onde a cruz gamada é a marca do terror. Uma denuncia chega. E um dia ele é preso. Quem foi que o disse anti-nazi? Nunca o soube; nunca mais o saberá. De que o acusavam? Jamais poderá conhecê-lo. Nem mesmo lho podiam dizer aqueles que o dirigiram durante longos meses.

Um dia foi preso – e isso bastou. Que interessavam as razões e o seu julgamento? Preso, era anti-nazi certamente. Preso era evidentemente contra Hitler. Preso, era mais um para destruir. Haverá uma pena que castigue quem de tal regime era responsável? Chegará uma morte para vingar centos de milhar?


Trabalhador rural e empregado no correio

Mas é melhor deixá-lo falar:

- Eu tinha uma Agência de Livraria. E uma casa. E mulher e filha. Tudo abandonei à pressa, sem guardar um franco ou um cigarro, sem lhes dar um beijo. Meteram-me num camião frio e cinzento. Adormeci nos solavancos da estrada. Acordei no campo de concentração de Vernet de Ariège. Olharam-me, interrogaram-me. E, não me podendo classificar como culposo de qualquer delito, resolveram instalar-me na secção de suspeitos, dos vigiados. Todos os dias, olhos curiosos espiavam os meus gestos, os meus movimentos, ouvidos atentos escutavam as minhas conversas com companheiros de desdita. Depois, desiludidos, mudaram de táctica. E para não ficarmos inactivos, resolveram dar-nos trabalho. Eu – não sei ainda hoje a que devo tal sorte! – fui escolhido para trabalhar nos arredores. O que isto representava de sorte no meio da tragédia quotidiana! Trabalhar nos arredores, era estar num dia inteiro ao ar livre, longe do espectáculo penoso do campo, respirar! Foram esses os melhores dias da minha vida de prisioneiro. Cortando árvores, revolvendo a terra, plantando e colhendo – eu e os outros fizemos de um terreno baldio uma terra e cultura. Dava gosto vê-la, verdejante, cheia de vida. Mas, alcançado que foi o objectivo, terminara o trabalho de excepção. Que me esperava agora?

“Você é dado às leituras, pois vai trabalhar no Correio”.

E fui. A coisa não caminhava mal. Recebia as cartas e as encomendas. E distribuía-as pelos outros. Que mais poderia eu desejar? Só a alegria de ser o portador de boas novas, o seu traço de união com a Vida!... Sim, que mais poderia eu desejar?... Depois, com o pretexto de eu conhecer quatro línguas, sou transferido para os serviços de censura. Não aqueço o lugar. Repugna-me ser obrigado a abrir correspondência alheia. Digo-me doente. Volto aos correios. E ali fico até que os alemães tomam conta do campo quando da ocupação total da França. Aparecem então os médicos da “Gestapo”. Fazem várias inspecções. Arranjo processo de esquivar a todas - menos a uma. Sou considerado forte para novas proezas. E as provações e as torturas começam.

Reportagem de Fernando Teixeira, in Diário Popular, 22 de Novembro de 1945

(Na Próxima semana transcreveremos a segunda parte da reportagem publicada pelo jornal no dia 22 de Novembro de 1945)

--- Leia aqui as PARTE 2PARTE 3PARTE 4.

quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

"O homem que veio do Outro Mundo"

No dia 27 de Janeiro, domingo, recordam-se as vítimas do Holocausto e o "Aterrem em Portugal!" associa-se a este dia de memória transcrevendo, na totalidade, a entrevista dada pelo português José Agostinho das Neves ao jornal "Diário Popular" de Novembro de 1945.


Neves, que estava emigrado em França quando a guerra começou, esteve preso em campos de concentração franceses e depois foi transferido para Dachau onde seria libertado pelos americanos no final do conflito. A entrevista, dada ao jornalista Fernando Teixeira, foi um dos poucas testemunhos daquele período que revelava a presença de cidadãos nacionais em campos de concentração alemães.

O texto original foi publicado em dois longos artigos que foi impresso em dias diferentes. Para facilitar a leitura no "Aterrem em Portugal!" a publicação será divulgada numa série de "posts" mais curtos ao longo de Janeiro e Fevereiro.

A primeira parte será publicada amanhã... Fica um pequeno extracto:

"Eu vim de Outro Mundo!...
E veio o pobre. De um Mundo que muitos conheceram, mas do qual nem todos podem ter a paradoxal felicidade de trazer recordações. De um Mundo que foi mancha e deshonra de homens, que foi expiação e vingança. De um Mundo que não poderá voltar a existir, que nós não queremos que volte - o  dos campos de concentração."


Carlos Guerreiro

sexta-feira, 4 de janeiro de 2019

Meios aéreos em operações de busca e salvamento durante a II Guerra Mundial

Os primeiros registos do envolvimento de meios aéreos nas operações de busca e salvamento datam de 1940, mas não envolvem unidades da Aviação Naval ou da Aeronáutica Militar e sim aparelhos civis pertencentes a companhias de transporte de passageiros, que nem portuguesa era.

Um Grumman Widgeon da Aviação Naval
No Atlântico a mais antiga referência a um pedido de apoio aéreo que foi possível encontrar data de 14 de Agosto de 1940, quando as autoridades portuguesas solicitaram a um Clipper da Pan American para que este ficasse atento à presença de baleeiras com os sobreviventes do “British Fame”, um petroleiro torpedeado na zona dos Açores. Em qualquer dos casos parece que a intervenção aérea não teve papel relevante no salvamento de náufragos.

No Índico, encontramos também referências à utilização de aparelhos civis. Foi isso que aocnteceu por exemplo a10 de junho de 1942 quando os registos britânicos salientam a presença de aviões da DETA, a companhia de aviação criada pelo Governo Colonial de Moçambique em 1936. As aeronaves estavam a dar apoio a unidades navais como o aviso Gonçalves Zarco, o patrulha Tete e o costeiro Sena que saíram para uma operação de busca a náufragos, no caso, pertencentes ao Atlantic Gulf e ao Wilford.

Pelo que foi possível apurar só em 1941 os aviões da Aviação Naval assumissem um papel coerente e persistente no sistema de busca e salvamento português. A chegada, em 1940, dos bimotores Grumman Goose, com grande alcance, deram um importante contributo para o trabalho que os pilotos da armada iriam desenvolver nos anos seguintes.

A primeira ação de busca e salvamento registada pela Aviação Naval teve lugar a 24 de junho de 1941, quando os Grumman Goose 107 e 108 realizaram voos de mais de cinco horas procurando sobreviventes do cargueiro português Ganda torpedeado pelo U-123, mas sem resultados já que estes tinham sido recolhidos por uma embarcação espanhola que por esta altura já se dirigia a Huelva.

Nos Açores a primeira destas operações aconteceu a 4 de Agosto do mesmo ano. Apesar de já se encontrarem Grumman’s nas ilhas o aparelho utilizado foi um Avro 86, um monomotor com curto raio de ação. Possivelmente tentava encontrar os sete tripulantes do Robert Max que chegaram pelos próprios meios ao arquipélago.

Se estas primeiras missões não tiveram sucesso outras houve que demonstraram a eficácia do uso dos meios aéreos. Nos dias 17 e 18 de Dezembro de 1941 levantaram voo do Centro de Aviação Naval (CAN) de Lisboa cinco aviões na tentativa de localizar a última baleeira do cargueiro português “Cassequel” afundado pelo submarino alemão U-108.

O relatório da operação é bastante detalhado não só em relação à descoberta do salva-vidas, mas também cno que concerne à forma como estas operações eram preparadas pelas tripulações. Cada aparelho levava cantis com água e latas com bolachas devidamente embaladas para poderem ser lançadas aos sobreviventes. Seguia também um invólucro capaz de conter uma mensagem escrita, que neste caso serviu para avisar os náufragos de que um navio estava a caminho e também para lhes dar um rumo para terra. As encomendas foram entregues aos destinatários e os hidroaviões aproveitaram também para tirar fotografias que ainda hoje existem no arquivos… 

A cobertura do Atlântico por parte de meios aéreos parece ter-se concentrado nos CAN de Lisboa e dos Açores. Da capital saíram Gruman’s Goose, Widgeon e Fleet's realizando um total de 250 horas e 50 minutos de voo relacionadas com busca e salvamento entre Setembro de 1939 e Dezembro de 1944.

No continente também foram solicitados, pontualmente, aviões da Escola Aeronaval Gago Coutinho, em São Jacinto, Aveiro, que deixaram registo de pelo menos 23 horas e 30 minutos de voo relacionadas com operações de busca e salvamento. Neste caso foram utilizados apenas Grumman’s Goose.

Já dos Açores voaram-se, pelo menos, 35 horas em Avro’s 626, Goose’s e Widgeon’s, mas as Ordens de Marinha daquele período nem sempre trazem os quadros espelhando a atividade daquele Centro Aeronaval, sendo por isso possível que tenham existido outros voos.

Sem acesso aos Grumman o apoio aéreo para a busca e salvamento no Índico socorreu-se dos meios que existiam. Entre os da marinha surge referida a utilização do Avro 86 do aviso Bartolomeu Dias (2 horas) e do Monospar que operava com a Missão Hidrográfica da Colónia de Moçambique e foi desviado para realizar um total de 3 horas e 20 minutos de operações de busca e salvamento no Canal de Moçambique.

Os aparelhos da marinha voaram, entre 1939 e 1944, pelo menos 312 horas e 45 minutos em missões de resgate.

Destaque-se ainda a utilização dos aviões da DETA no Canal de Moçambique nas operações de salvamento. Para além do caso já referido existe ainda na entre a documentação britânica o relato desconfiado do comandante de um navio britânico naufragado que mal tinha posto o pé em Lourenço Marques e já estava a ser interrogado pelo capitão de porto português de uma forma que considerou suspeita. No entanto quando se queixou ao cônsul britânico na cidade foi aconselhado de imediato a responder de forma verdadeira às perguntas do oficial português pois este era uma “pessoa diligente” e costumava enviar rapidamente navios e aviões para os locais dos afundamentos de modo a socorrer os possíveis sobreviventes. Não sendo normal a presença de aviões militares naquele território, pode supor-se que eram os aviões da DETA a realizar estas operações.

Carlos Guerreiro