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sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Os senhores que mandavam no rádio…

Por Carlos Guerreiro

“A medida é violenta mas indispensável porque – digo-o com a maior das preocupações e desgosto – em quase todo o Algarve não se cumprem as ordens do Governo da Nação, relativamente às emissões radiofónicas de propaganda dos países beligerantes, seus aliados e simpatizantes, que foram expressamente proibidas”.

Anúncio da Philips mostrando vários modelos de rádio daquela companhia. Publicado no "Diário de Lisboa" em Setembro de 1939. 
(Diário de Lisboa/Fundação Mário Soares)

Este é apenas um dos parágrafos de circular enviada às várias câmaras do distrito pelo Governador Civil de Faro, Armando Monteiro Leite, em 5 de Maio de 1943. Com a circular seguiam cópias de um edital a ser colocado nos locais públicos exigindo a entrega de todos os aparelhos de rádio às autoridades para serem selados.

Num tom, por vezes quase irado, o documento salienta que o momento se “reveste de extraordinária gravidade, porquanto a indiferença da maioria das autoridades revela afinal que não é suficientemente avaliada a responsabilidade moral assumida por Portugal ao declarar e definir a sua posição de neutralidade em face da horrorosa tragédia que vive a humanidade”.

Desde o princípio do conflito que as várias facções da guerra bombardeavam o país com propaganda. Diversas publicações – como por exemplo a “Signal” (alemã) ou a “Neptuno” (britânica), entre outras começaram a circular, especialmente, a partir de 1940.



A BBC foi uma das primeiras estações de rádio a realizar, em onda curta, transmissões para Portugal. Este é um dos muitos anúncios publicados na imprensa portuguesa diária.  Fernando Pessa era um dos "radialistas" mais conhecidos e ouvidos.
(Diário de Lisboa/Fundação Mário Soares)











Os “sagrados interesses da Pátria”

A rádio é um dos mais poderosos meios de propaganda da época e cedo emissoras alemãs, britânicas, italianas, soviéticas e americanas criam programas em português. A procura de informação por parte da população juntava multidões nos locais onde existiam rádios. Tabernas, agremiações sociais, culturais e de recreio eram muito procurados pois os aparelhos em residências particulares eram escassos.

Destas aglomerações resultavam manifestações públicas que preocupavam o regime. O aumento do número de emissões levou o governo a publicar diversos editais. Um, em Maio de 1941, é acompanhado de um documento onde Armando Monteiro Leite esclarece que o objectivo é evitar “actos que se prestem a criar embaraços ao Governo”, até porque “acima de simpatias e antipatias de ordem pessoal estão os sagrados interesses da Pátria”.



Os muitos interesses da Alemanha em Portugal não deixaram o regime hitleriano descurar a propaganda para o país.
(Diário de Lisboa/Fundação Mário Soares)












Esta “Circular Confidencial”, enviada aos autarcas, explica que “infelizmente, na sombra, elementos suspeitos procuram prejudicar a unidade nacional, explorando ódios e paixões, levando a confusão a espíritos locais e incultos, tentando (…) contrariar a acção do Governo”.

Fica, a partir daquela data, proibida a audição em locais públicos de emissões “que captem postos estrangeiros (…) para retransmissão de notícias e comunicados de guerra”.





Com entrada dos Estados Unidos da América na Guerra chegou também a Portugal uma das mais poderosas máquinas de propaganda do mundo.
(Diário de Lisboa/Fundação Mário Soares)










São anunciadas ainda outras restrições como a colocação de cartazes, “revistas fotográficas” ou outro tipo de propaganda dos beligerantes em montras. Proíbe também que os populares “usem emblemas e insígnias representativas ou alusivas a países beligerantes”, e a sua venda em estabelecimentos portugueses.

Proibido… mas não muito

Dois anos depois, e em relação à rádio, poucas destas imposições eram cumpridas. Mais grave era o facto do desrespeito pelas normas ser feito à vista de todos, como confirmam vários exemplos referidos na circular “que denotam a brandura de algumas autoridades que conduziram a abusos de ousadia que podem originar situações melindrosas”:

a) Numa vila, sede de concelho, chegou-se a utilizar alto-falantes para retransmissão pública de notícias divulgadas por postos estrangeiros;

b) Numa cidade, defronte de um largo público, determinada casa particular abria de par em par as janelas, para que uma massa confusa de pessoas de rudimentar cultura e obcecado facciosismo escutasse as emissões de terminados postos estrangeiros.

c) Em *todas as associações de recreio - algumas tendo como directores *autoridades – se permitem as emissões de notícias de guerra de postos estrangeiros de radiodifusão.

d) Tendo-se reprimido em uma ou outra Casa de Povo o uso de aparelhos de rádio para a audição de notícias estrangeiras (…), os seus sócios deixaram de frequentar as sedes para assistirem nas tabernas locais às audições de programas de notícias e propaganda de guerra, feitas por postos estrangeiros de radiodifusão, inclusive os da Rússia Comunista.

Estas são algumas das razões que levam à selagem e ao envio de uma relação dos aparelhos existentes na região para o Governo Civil.

De fora ficam apenas os locais onde seja possível exercer um “eficiente vigilância”. Também poderão ser desbloqueados alguns rádios, depois de se averiguar a “idoneidade moral e política dos requerentes”.

As ordens são para cumprir de imediato, mas a vontade de ferro do Governador Civil é vencida com alguma rapidez.






Todos os beligerantes tentaram passar a sua mensagem, incluindo os Italianos. Não podemos esquecer que comunidade italiana em Portugal era bastante grande. Em, Olhão, no Algarve, onde os italianos dominavam a indústria de conservas, existiu mesmo um núcleo de "Camisas Negras", onde só se podia entrar com convite.
(Século Ilustrado/Arquivo Municipal de Portimão)













À boa maneira portuguesa, apenas 22 dias passados, as ordens são suavizadas, num novo edital. Continua proibida a audição de emissões em “tabernas, cafés, hotéis e restaurantes”, mas nas associações de recreio, “desde que os seus directores se responsabilizem” e prometam não ouvir postos estrangeiros poderão ser devolvidos os aparelhos.

* - sublinhado no documento original

sábado, 19 de fevereiro de 2011

Algumas perguntas a Robert Wilson

Por Carlos Guerreiro

Robert Wilson é um escritor britânico que vive em Portugal há muitos anos. Neste momento reside no Redondo, no Alentejo, onde escreveu as suas últimas obras. Dos dez livros que publicou, dois estão relacionados com Portugal: “O ÚLTIMO ACTO EM LISBOA” (original de 1999) e “A COMPANHIA DE ESTRANHOS” (original de 2001). Ambos centram parte da sua acção no Portugal da II Guerra Mundial, razão para uma conversa com o autor.
No centro desta conversa está especialmente o primeiro destes livros que se concentra na mal conhecida “guerra do volfrâmio”, uma tema que só recentemente começou a ser conhecido, mesmo entre nós. Este é também um dos mais importantes livros da carreira de Wilson pois recebeu o “1999 Crime Writers Association Gold Dagger” (Prémio Adaga de Ouro da CWA de 1999) e o “2003 International Deutsche Krimi Prize” (Prémio Internacional Alemão de Crime de 2003).

Aterrem em Portugal: Parte da acção dos livros que escreveu, relacionados com Portugal, têm como pano de fundo o período da II Guerra Mundial. Porquê a escolha deste tema?

Robert Wilson: Escrevi quatro livros que tinham como cenário África, e nessa altura África não era um tema de leitura muito popular.

Quando terminei esses livros vivia em Portugal há cerca de 10 anos. Nessa altura pensei: as pessoas conhecem melhor Portugal, estão mais identificadas com o país e talvez seja um bom tema sobre o qual devo escrever.

Como já cá vivia há alguns anos, sentia-me mais confortável a escrever sobre o país. Conhecia alguma coisa sobre as pessoas e sobre a linguagem.

Faltava apenas encontrar o tema. Estávamos nos anos 90 e nos jornais lia muito sobre o ouro nazi. Julguei que talvez encontrasse a minha história: a forma como o ouro vinha da Alemanha, através de Espanha, até Portugal para depois desaparecer misteriosamente na América do Sul.


Estranhamente, e quanto mais pensava no assunto, menos excitante a história me parecia. Realizava pesquisas com a minha mulher em Londres, para um outro livro, e pedi-lhe para cruzar as palavras ouro com Portugal e ver o que acontecia.

Ela voltou muito depressa e disse-me que grandes quantidades de ouro entraram em Portugal durante a governação de Salazar, durante a II Guerra Mundial, por causa do volfrâmio.

O que é volfrâmio?, perguntei-lhe.

“Não faço ideia”, respondeu-me.

Descobrimos depois que volfrâmio era tungsténio e que, quando Hitler invadiu a Rússia, cortou a rota do principal do seu abastecedor que era a China. Isto queria dizer – por causa do tipo de conflito em que estava envolvido, um conflito de blindados – que era preciso muito aço e um dos componentes da liga é o tungsténio. Por isso ele tinha de encontrar um fornecedor alternativo.

Havia um pouco na Suécia – apenas cerca de 300 toneladas – e a maior parte estava em Portugal. Nessa altura existiam talvez cerca de 3000 toneladas no país. Pareceu-me que esta era um possibilidade de história muito mais interessante…


 
"Último acto em Lisboa", na edição da Dom Quixote de 2009 (ISBN: 9789722037297).














 

Aterrem em Portugal: Pesquisou o tema e falou com portugueses para compreender o que estava a acontecer no país nesse período. Que imagem tem de Portugal dos anos quarenta?


Robert Wilson: Em Inglaterra as pessoas escrevem diários e mantêm registos diversos sobre os acontecimentos. Há relatos pessoais e esse tipo de coisas. Em Portugal estamos a falar do período de Salazar e a população tinha medo, por isso não fazia, nem guardava, esse tipo de relatos. Isso foi o mais difícil, encontrar informação sobre o que se passava no país.

No Fundão, por exemplo, pedi a um jornalista os jornais dos anos 40 para a minha pesquisa. Disse que mos dava, mas que não iria servir-me de nada, por causa da censura.

Foi necessário encontrar pessoas que tivessem vivido essa história. Conhecer uma ou duas foi suficiente para ficar com uma imagem sobre o que se passava: aldeias inteiras do Alentejo deixavam os campos agrícolas e seguiam para a Beira, porque uma rocha de volfrâmio podia valer um mês de ordenado. Criou-se uma febre que atravessou Portugal.

De repente surgiu a oportunidade de todos poderem fazer uma fortuna.

Aterrem em Portugal: Quando se começa a pesquisar este período encontramos informação contraditória. Este era um país fascista e existia um forte controlo sobre a população. Mas parece, em vários momentos, que houve um afrouxamento nesse controlo. É pelo menos um período estranho.

Robert Wilson: Essa foi certamente a impressão com que fiquei.

Existiam centros de controlo, como Lisboa. Sentimos que a cidade estava controlada. Lembro-me de encontrar relatos de estrangeiros que comentavam o barulho que se ouvia todas as noites, por volta das nove horas. Soava como se fossem tiros. Depois ficavam a saber que a população só estava autorizada a bater os tapetes durante a noite, e era esse o barulho que se ouvia.

Nestas pequenas coisas percebemos que se tratava de uma sociedade muito controlada.
Na Beira esse controlo não existia, e existiam ainda muitas influências no terreno. Estavam lá os britânicos. Estavam lá os alemães. Estavam lá homens de negócios - portugueses e espanhóis.

Havia também muito contrabando.

Nesta zona não existia um controlo muito apertado e havia dinheiro. Por dinheiro as pessoas fazem coisas que normalmente nunca fariam.

Lembro-me de estudar num mapa as possíveis rotas que o contrabando poderia utilizar. Para mim a zona da Serra da Malcata seria um bom local para isso acontecer. Desloquei-me àquela zona e percebi que ainda hoje ali existe contrabando, não de volfrâmio, mas de tabaco.

Desembarcam os cigarros na costa perto de Aveiro e depois transportam-nos por ali.





"Na companhia de estranhos" também foi reeditado pela Dom Quixote em 2009 (ISBN: 9789722037303)













Aterrem em Portugal: O que mais o surpreendeu nesta pesquisa?
Robert Wilson: Fui surpreendido e fiquei impressionado com Salazar. Ele tinha um jogo muito difícil para fazer.
Estava entre os Aliados e o Eixo. Faziam ambos uma grande pressão sobre ele.
O Eixo ameaçava-o. Basicamente diziam que teria de fazer o que lhe pediam ou haveria problemas, como o ataque a embarcações portuguesas, por exemplo.
Os Aliados lembravam-lhe que tinham o tratado de aliança mais antigo do mundo – desde 1386 – e que por isso tinham de ser amigos.
Salazar fez um jogo muito cuidadoso. Tentou satisfazer ambos os lados e, ao fazê-lo, ainda conseguiu juntar uma fortuna com o volfrâmio.
Esta foi uma das maiores surpresas que tive. Salazar saiu da II Guerra Mundial como uma história de sucesso, e eu não esperava isso. Era um fascista, um grande admirador de Mussolini. Pensava que ele sairia queimado devido a essa associação, mas não foi isso que aconteceu. Ele saiu muito bem da II Guerra mundial…


Sinopse oficial de "Último acto em Lisboa"

1941
Klaus Felsen, o proprietário de uma fábrica em Berlim, é forçado a alistar-se nas SS e a dirigir-se a Lisboa, cidade de luz, onde ao ritmo dos dias convergem nazis e aliados, refugiados e especuladores, todos dançando ao compasso do oportunismo e do desespero. A sua missão é infiltrar-se nas geladas montanhas do Norte de Portugal, onde se trava uma luta traiçoeira pelo volfrâmio, elemento essencial à blitzkrieg de Hitler. Aí encontra Manuel Abrantes, o homem que põe em movimento a roda de ambição e vingança que irá girar até ao final do século.
Final dos anos 1990.
O inspector Zé Coelho, da Polícia Judiciária, investiga o crime sexual cometido contra uma jovem adolescente em Lisboa. Esta pesquisa conduzirá Coelho por terrenos lodosos da História a um crime mais antigo - enterrado com os ossos de um passado de fascismo - e a um pavoroso motivo enterrado ainda mais fundo. E, uma vez à superfície, o passado e o presente irão convergir com implicações arrepiantes e consequências insondáveis.



Sinopse oficial de "A companhia de estranhos"

Lisboa, 1944. No calor tórrido do Verão, as ruas da capital fervilham de espiões e informadores, enquanto os serviços secretos disputam em silêncio a última partida. Os alemães dominam a tecnologia dos foguetões e a pesquisa atómica. Os aliados estão decididos a impedir que a ameaça da «arma secreta» venha a concretizar-se.
Andrea Aspinall, matemática e espia, entra nesse mundo sofisticado pela mão de uma abastada família do Estoril. Karl Voss, adido militar da Legação Alemã, abalado pela implicação no assassinato de um Reichsminister e traumatizado pelo desastre de Estalinegrado, chega a Portugal com a missão de salvar a Alemanha do aniquilamento. Na tranquilidade mortal de um paraíso corrupto, Andrea e Voss encontram-se e tentam viver o seu amor num mundo em que não se pode acreditar em ninguém. Depois de uma noite de terrível violência, Andrea fica na posse de um segredo que vai ligá-la para sempre ao mundo clandestino, do repressivo regime fascista português à paranóia da Guerra Fria na Alemanha. E aí, numa Berlim gelada, descobre que os maiores segredos não estão nas mãos dos governos, mas em mãos muito próximas de si, e é forçada a fazer a derradeira e dilacerante opção.



Site oficial de Robert Wilson aqui.