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sexta-feira, 8 de maio de 2015

Um problema a meia haste

Os militares britânicos e americanos não queriam acreditar no que viam. Um aquartelamento português, mesmo junto à base das Lajes, e o edifício onde funcionava o Quartel-General aliado na Ilha Terceira, ostentavam as bandeiras portuguesas a meia haste. O governo de Lisboa ordenava que, durante dois dias, todos os edifícios públicos ostentassem o sinal de luto em memória a Adolfo Hitler.

Cerimónia do hastear da Bandeira Portuguesa na Ilha de Santa Maria, nos Açores, em 1948.
(Foto: Arquivos Americanos NARA)

O comandante britânico dos Açores comunicou a situação à Embaixada Britânica de Lisboa, onde Ronald Campbell, representante do Governo de Sua Majestade, explicou que, apesar de tudo, Portugal era neutral e continuava a manter relações diplomáticas com a Alemanha. Hitler era o chefe de estado do país, razão porque se cumpria o protocolo declarando luto nos dias 3 e 4 de Maio de 1945. Mesmo assim considerava-se que a ilha deveria ter sido uma excepção a esta ordem e que a atitude mostrava uma “descortesia” incompreensível, tendo em conta as excelentes relações que existiam entre portugueses e britânicos.

Mas na Terceira houve quem tivesse encontrado forma de “tornear” as ordens recebidas da capital. Segundo um relatório americano o comandante Luís Lima, responsável pela marinha portuguesa na Terceira, entendeu que era “impraticável” cumprir a ordem. Em Angra as adriças (cabos) desapareceram e não foi possível substituí-las atempadamente. Já o mastro de bandeira localizado na Praia da Vitória teve de ser pintado com urgência ficando depois a secar.

Entre as comemorações do Dia da Marinha, a 3 de Maio, - onde não se colocam bandeiras a meia haste - e as questões já referidas a Marinha de Guerra na Terceira não terá conseguido cumprir o luto.


Uma bandeira na tempestade

A colocação das bandeiras a meia haste trouxe dissabores diversos ao governo de Oliveira Salazar. Tantos os arquivos britânicos como os portugueses guardam testemunhos do desagrado com que a notícia foi recebida nos vários cantos do mundo, tanto pelos estrangeiros, mas também por portugueses.

Em Londres foi a notícia do correspondente do “Times” que levou o assunto até ao Foreign Office (Ministério do Negócios Estrangeiros inglês). Imediatamente foram pedidos esclarecimentos a Ronald Campbell, que nos dias seguintes se viu envolvido numa intensa troca de correspondência.

Campbell, um admirador de Salazar, defendeu, também neste caso, a posição do líder português, recordando que Portugal e Alemanha continuavam a manter relações diplomáticas. Explicava também que Salazar era um rígido defensor das formalidades, estando “tão afastado do mundo que esperava, certamente, que todos vissem o seu acto da mesma forma desprendida como ele o via”. Adiantava ainda que o ditador português fora surpreendido com a “violência” das reacções negativas, e estava a justificar-se perante as diversas representações diplomáticas. “Não me recordo de ver o Governo português reagir com tanta rapidez”, destaca a certa altura.

Oliveira Salazar era também o titular da pasta dos Estrangeiros, mas seria o embaixador Luis Teixeira de Sampaio, secretário-geral do MNE, a receber pessoalmente parte importante das queixas britânicas que lamentavam “o triste espectáculo de ver de luto a bandeira de um aliado, reconhecido pelo mundo, como o criminoso de guerra número um”.

A pressão britânica fez-se sentir também em Londres, onde o embaixador português foi chamado a prestar contas a 7 de Maio e viu a atitude portuguesa ser classificada como uma “afronta”, que tornava difícil ao Governo Britânico justificar, perante a opinião pública, a continuada colaboração entre os dois países.

O representante em Londres, Duque de Palmela, argumentou que se tinha mantido o protocolo nos mínimos e, enquanto semanas antes, após a morte do presidente americano Franklin Roosevelt, se tinham colocado as bandeiras a meia haste, disparado salvas de artilharia e realizado visitas de cortesia à embaixada, com a morte de Hitler tudo fora reduzido à colocação das bandeiras a meia haste.

A defesa da atitude portuguesa esgotava-se na questão da Terceira, onde o representante diplomático reconheceu que ordem deveria ter tido em conta a situação especial que ali se vivia. Palmela prometeu enviar a informação para Lisboa.


Palavras duras

Menos diplomática foi a reacção da imprensa internacional e de alguns particulares. Diversos órgãos de comunicação do lado aliado divulgaram a notícia. Para além de Portugal referiam também reacções semelhantes da Irlanda e da Espanha. A imprensa portuguesa acrescentava ainda os casos da Suíça, Suécia e da Nunciatura Apostólica.

A BBC parece não se ter coibido de repetir a notícia e a reacção do Governo britânico de forma veemente . Numa das suas missivas Campbell pede mesmo para que a rádio deixe de insistir no tema.

Um relatório de escuta de emissões internacionais da Emissora Nacional, transcreve a notícia dada pela Rádio Brazzaville que considera que a ordem “não foi uma simples convenção de neutralidade”, mas uma manifesta “prova de condolências por um bandido” e um “insulto aos heróis abatidos nesta luta; um insulto às vítimas dos campos de concentração; (...); um insulto aos homens que conduzem e procuram o bom termo desta luta”. “Não foi o povo português que venerou Hitler, nós sabemo-lo, mas tudo isto é lamentável ”, lê-se numa passagem.

A documentação inglesa refere também a chegada de inúmeros telefonemas de particulares a protestar contra a decisão do Governo de Salazar e entre os arquivos da Torre da Tombo é possível encontrar alguns telegramas, especialmente da comunidade portuguesa no Brasil, país que tinha enviado homens para o conflito. “Protesto sua atitude Nazista” e “Abaixo seu Governo Nazista”, são expressões que se podem ler numa mensagem enviada por um certo Christiano de Ávila da Baía. Um grupo de 500 portugueses, residentes em São Paulo, também pede a demissão do governo, enquanto noutro telegrama se pedem justificações diplomáticas urgentes, de modo a que comunidade residente no Brasil não seja prejudicada.

Mas nem todos tiveram um olhar crítico sobre a colocação das bandeiras a meia haste. Do Convento Franciscano de Pontevedra, Espanha, chegou uma pequena nota onde é elogiada a atitude de Salazar para com “Adolfo Hitler, um dos maiores homens da humanidade”.

Carlos Guerreiro

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