“Era moço novo e tinha casado há pouco tempo. Queria lá levantar-me de madrugada, Mas bateram tanto à porta quem tive de vir cá abaixo”, explicava-me o senhor Batalim, que fora dono de uma “venda” em Monchique, no Algarve.
O edifício onde durante anos vendeu copos de tinto à mistura com azeite ou arroz encontrava-se no Largo dos Chorões, ainda hoje uma zona central daquela vila algarvia. Foi nesse largo que o encontrei, já lá vão muitos anos, nem sei bem quantos.
Na altura já estava empenhado na procura das histórias sobre os aviões da guerra e recordo que ele referiu, de forma vaga, um ou outro caso que lhe “tinham contado”, mas a história que me ficou na memória foi outra.
Publicidade a um rádio da marca Siemens de 1943
Foi a epopeia dos seus rádios, durante a guerra, que me fizeram rir. Na altura não tirei muitos apontamentos e quando, anos depois, falei com um amigo de Monchique sobre este caso ele lamentou dar-me a notícia do falecimento do protagonista da história.
As linhas que deixo são, assim, uma mistura de apontamentos e memórias. Faltam certamente pormenores e haveria com certeza mais para dizer… As expressões dele eram riquíssimas. Se alguém tiver mais a acrescentar ficarei, como sempre, agradecido pelo seu contacto.
Pouco antes de rebentar a segunda guerra o senhor Batalim conseguiu comprar a tal “venda” do Largo do Chorão. Já lá trabalhava quando os sócios decidiram vender o estabelecimento e, com algum dinheiro que tinha juntado, resolveu aventurar-se.
Para além do balcão, das prateleiras e outras comodidades habituais num estabelecimento deste tipo também recebeu dois aparelhos de rádio. De facto apenas um funcionava e estava por detrás do balcão, enquanto o outro se encontrava avariado num dos anexos.
Os rádios eram uma das atracções do espaço comercial. Nem todas as pessoas tinham condições para ter um aparelho e ouvir as notícias ou outras emissões na “venda” não era anormal.
Um dia entraram-lhe pela porta adentro o presidente da câmara e alguns fiscais. Vinham a apreender rádio e levaram não só o que funcionava como também o avariado.
O senhor Batalim reconheceu que às vezes “era normal” fechar a porta ainda com alguns clientes para ouvir as emissões da BBC durante a noite. Terá sido por cometer este “crime” que os rádios voaram das suas prateleiras para o depósito da autarquia.
Com a guerra em crescendo os principais beligerantes passaram a emitir noticiário em português. Para evitar que os “sagrados interesses da Pátria” fossem afectados, nomeadamente a sua política de neutralidade, o Governo decretou em 1941 a proibição de ouvir emissores estrangeiros em grupo.
Em muitos locais esta proibição foi cumprida à portuguesa como revela um édito emitido em 1943 pelo Governador Civil de Faro que refere vários casos onde a legislação foi “torneada”. Nesse documento era também decretada a apreensão de todos os aparelhos de rádio que se encontravam em espaços públicos. Apesar de não se lembrar da data em que ocorreu a apreensão esta pode ter acontecido na sequência desta ordem.
Avaria providencial
É alguns dias depois desta apreensão que o senhor Batalim se viu arrancado da cama a altas horas da noite. Quem insistia em bater era um membro da comitiva do então governador civil, Major Armando Monteiro Leite, que nesse dia se deslocara ao conselho para uma visita oficial.
Já no regresso uma viatura da comitiva sofreu uma avaria e sem outra possibilidade tiveram de regressar a Monchique. A “venda” do Largo dos Chorões tinha um dos poucos telefones públicos da vila, razão para o insistente bater na porta.
Telefonar não era tão fácil como hoje. A ligação partia de Monchique até à estação telefónica de Portimão onde alguém, manualmente e com um sistema de fichas, assegurava a ligação à estação seguinte até chegar a Faro. Esta última ligava depois ao número de telefone desejado.
Era um percurso demorado que Batalim aproveitou para meter conversa com a filha do Governador Civil. “Era uma rapariga jeitosa” relembrou. Conversa puxa conversa e o caso dos rádios também veio à baila com o comerciante a mostrar-se incrédulo com o que tinha acontecido e contar o episódio como se fosse uma anedota.
Terminada a crise regressou à cama e não voltou a pensar no assunto.
Dias mais tarde recebeu um preocupado recado do presidente da câmara. Queria que este fosse à autarquia com urgência.
O senhor Batalim lá foi, sem perceber muito bem a razão para tanta pressa. Uma apreensão que se adensou com a conversa e o autarca a tentar explicar que os rádios tinham sido apreendidos por ordem superior. Por fim o autarca foi directo e perguntou-lhe: “Oh Batalim, mas quem é tu conheces?”…
“Não interessa quem eu conheço…” respondeu-lhe o comerciante ainda desconfiado com o rumo da conversa. Por fim o presidente da câmara explicou-se. Tinha recebido uma nota do Governo Civil a dar ordem para que os equipamentos fossem devolvidos, especificando que se referia tanto ao rádio que funcionava como ao outro, o avariado.
Batalim insistiu em não dar mais esclarecimentos. Recuperou os dois rádios e voltou à sua actividade normal…
“Só depois do 25 de Abril contei ao presidente da câmara quem eram os meus conhecimentos…e ele acabou por se rir”, concluiu orgulhoso.
Lá diz o ditado: “Não interessa quem tu conheces, mas sim quem pensam que conheces…”
Carlos Guerreiro