Pesquisar neste blogue

terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

Para ver durante a semana...

Até ao final da semana pode visitar junto da Biblioteca da Eascola EB. 2, 3 Cardoso Lopes, na Amadora, a exposição "Contar o Holocausto..."

Nesta mostra poderá encontrar espaços expositivos dedicados a Adolfo Hitler, uma reconstituição de uma câmara de gás, os vários símbolos dos uniformes usados pelos presos dos campos de concentração, informação sobre Anne Frank e Aristides de Sousa Mendes. Presentes estão também obras infantis e da historiadora Irene Pimentel dedicados a esta temática, cartazes daquele período e outras informações e peças...

Até ao dia 8 de março pode também visitar "Desenhar contra o esquecimento" no Andar Nobre da Assembleia da República. Trata-se de uma mostra realizada em parceria com a Embaixada da Áustria e a Embaixada da Alemanha, que consiste em desenhos de grande escala, a carvão, representando crianças assassinadas durante o regime nazi. Cada desenho é acompanhado por textos de contextualização.



Boas visitas...

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2019

«Escaparate de Utilidades»
Chá Bom Guia n.º 2

Jornal "Diário de Lisboa", 25 de Fevereiro de 1945

quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

O Postalinho...
Um caso único na História do Crime


Postal alemão de propaganda publicado em data desconhecida, mas certamente posterior a fins de 1941, altura em que o EUA entraram na guerra.

Os alemães ridicularizam a aliança entre britânicos, americanos e a russos, aqui representados pelos seus líderes, nomeadamente, Churchill, Roosevelt e Estaline.

A associação da imagem dos três líderes foi utilizada para desacreditar os aliados porque a máquina de propaganda do Eixo sabia que em Portugal se admirava a Inglaterra, se suspeitava dos americanos, mas, acima de tudo, se temia a Rússia e o comunismo. 

Estaline surge normalmente com um aspecto andrajoso ou monstruoso, consoante o tipo de representação pretendida, o que acentua ainda mais a diferença em relação às duas outras personagens.

Carlos Guerreiro

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2019

«O homem que veio do Outro Mundo» (4)
A vida em Dachau

Terminamos nesta publicação a transcrição da entrevista dada por José Agostinho das Neves ao jornalista Fernando Teixeira, do Diário Popular, em Novembro de 1945.

Nesta trecho é descrita a vida em Dachau e a libertação do campo pelos americanos...

Espero que o trabalho em transcrever estas longas páginas de jornal sejam úteis.



Recomeça aqui a transcrição:

Seis homens numa cama com 70 centímetros de largura

“Eu vou com alguns dos meus companheiros, de França, para o Block-21. O recinto ocupa uns mil metros quadrados. Ficámos ali a viver 1200 homens que, durante a noite, deveriam dormir numa barraca que mal comportava 300. Quando nos cabia a vez de adormecer sob o telhado da barraca, a coisa não era fácil, pois as camas, de madeira, sobrepostas em três compartimentos, só tinham 70 centímetros de largo para seis homens cada.

O que nos valeu foi que a fome nos havia feito emagrecer muito…”

- Como era o regime dos prisioneiros em Dachau?

- De manhã, às 4 e meia, eramos obrigados a levantar-nos e a sair para o pátio onde permanecíamos todo o dia até às 7 da tarde, qualquer que fosse o tempo cá fora. No Inverno, o sofrimento foi doloroso. Com a chuva, a neve e o frio e sem nos podermos abrigar «, só nos restava um recurso: apertar-nos uns de encontro aos outros, como um rebanho de carneiros e ficarmos para ali a procurar não deixar fugir o calor que cada um de nós pudesse armazenar e ceder ao outro. Sem roupa que chegasse e sem calçado, com uma temperatura de 24 graus abaixo de zero, muitos caiam sem sentidos e, assim iam morrendo. Outros, com os pés gelados e gangrenados, eram levados ao hospital ou metidos como coisa inútil no forno crematório e queimados vivos. O espectáculo começou a ser tão vulgar que cada um de nós esperava a entrada no forno como o fim lógico daquela vida ilógica. Durante o dia, para romper a monotonia daquela vida miserável e para que os guardas não se aborrecessem, faziam-nos formar e conservar horas seguidas na posição de sentido para ver a nossa resistência e separar os que deviam partir para os trabalhos nos “comandos” e os que, por serem fracos, iam acabar na câmara dos gases, mortos por asfixia e intoxicação.

A voz do meu companheiro de Paris volta a ter um som cavo, e a sumir-se como se as próprias palavras lhe causassem pavor:

- Quando se fazia esta escolha – a “visita” como nós lhe chamávamos – o silêncio era profundo, doloroso. Cada um de nós pensava consigo: “Será agora a minha vez? Os mais animosos despediam-se dos camaradas antes de serem levados para a câmara de gases e abriam a boca num sorriso em que ia todo o seu desprezo pelos “nazis”, aniquiladores de uma raça, de uma civilização, de um continente.

Outros tinham um grito pueril: “Os americanos hão-de vingar-nos!”

Os alemães sabiam do avanço aliado em terras da França e da própria Alemanha – e não perdoavam. E muitos dos condenados eram mortos ali mesmo a tiro. Menos gás que se gastava na câmara…


Atacado de tifo e não tratado

Depois de ter escapado em várias “visitas”, acabei por ser incorporado num transporte com destino a Hamburgo. Mas não cheguei a ir. Atacado de tifo, estive nove dias com 40 graus de febre. Os meus companheiros, condoídos, amontoavam-se nas outras camas para me deixarem só com mais dois no meu leito. Mas ninguém podia tratar-me. E os médicos do campo tinham mais que fazer, ocupados em averiguar até que ponto resistiam aos bacilos do cólera e do paludismo alguns dos internados no campo transformados em cobaias. Depois dos nove dias, começo a sofrer de disenteria. Os camaradas chamaram os guardas. O meu estado já não deixava ilusões a ninguém. Sou então dado como “kaput” e levado para o “block 30” – o dos condenados a desaparecer, pela fome ou pela doença.

Aí, a lotação era de 1200 homens e já não havia camas. Tíficos, tuberculosos, grípicos, estavam, lado a lado no chão da barraca carpindo as suas dores, delirando nos seus sonhos de febre alta. Morriam, em média, 40 por dia. De manhã os cadáveres eram levados para a casa de lavar (a indiferença com que nós os afastávamos do caminho quando íamos passar um pouco de água na cara e nas mãos!) Depois um carro vinha buscá-los descarnados, amontoados uns sobre os outros, nus (porque o seu fato ia logo servir a outros que entrassem de novo!).

Nunca mais poderei esquecer esse carro fantasma! Quantas vezes, ao vê-lo passar, eu cheio de febre, de dores, de fome, de sede pensava para comigo próprio: “Que mal terei eu feito ao mundo, a este homens? Porque não morro sem mais sofrimentos? Para que resisto? E porque não terei eu direito a viver feliz? Quem semearia urtigas no meu caminho? Quem? Depois, caía, - abatido. Mas sem sabe como, aguentei-me. E, apesar dos meus 39 quilos de peso, a febre ia passando, diminuído dia a dia.

Comecei a comer (nunca fui tratado do tifo ou da disenteria com medo de morrer de fome. De resto a comida não era tanta que matasse: de manhã uma beberagem a que podia chamara-se chá ou café conforme o gosto; ao meio dia, um litro de água quente com um pouco de beterraba; às 7 da tarde, 150 gramas de pão, uma rodela de salsicha e meio litro de infusão de ervas, sem açúcar.


A flagelação e a agressão

- Como explica a sua resistência à doença?

- Sabe-se lá! Quando voltei a Paris, um médico disse-me que tinha esgotado todas as minhas reservas. E que me valera não ter sofrido qualquer castigo grave durante o tempo que estive em Dachau. Se isso tivesse acontecido, não resistiria à perda de mais reservas do organismo. E o meu castigo foi só estar nu e em pé um dia inteiro no pátio porque aparecera um piolho na minha cama…

- Mas de que sorte eram os outros castigos?

- O mais frequente era o da flagelação. O castigado deitava-se sobre um pequeno carrinho de jardim, de joelhos, com as mãos atadas à roda. Dois guardas, munidos de nervos de boi, aplicavam-lhe então, alternadamente, nas costas e nas nádegas, o número de vergastadas que lhe fora atribuído, nunca inferior a 25. Vi um homem que ficou com os ossos à superfície, após ter recebido 300 vergastadas. E quando o supliciado soltava um grito, os golpes dados não eram tidos em conta e a contagem começava de novo. Felizmente, nunca recebi qualquer castigo destes. Fui agredido várias vezes a soco e a pontapés, feriram-me com um pau na cabeça, partiram-me os óculos por duas vezes. Foi tudo. Mas os outros… Quantas vítimas dos “nazis”! O forno crematório ardia constantemente. E na sala de banhos havia barras de madeira para os enforcamentos…

- Quais foram os factos que mais o impressionaram durante a sua estadia em Dachau?


O Homem que morreu quando quis

-É difícil. Foram tantos… Mas sabe, depois, a sensibilidade embota-se, já não temos cérebro, nem coração. Andamos, falamos, gritamos ao acaso… Autómatos, enfim. O que mais me impressionou? A morte daquele professor de francês que era meu companheiro de “blok”. Não merece a pena dizer o nome. Um dia, dia nevoento e chuvoso, arrastou-se até junto de mim e mais dois companheiros. Queixou-se amargamente da sua sorte. Depois, encolheu os ombros e disse: “também não vale a pena incomodar-me: isto está por pouco”… Olhou-nos bem de frente com os seus olhos ingénuos, transparentes… E disse-nos adeus. Soubemos depois, duas horas mais tarde, o que acontecera. Saíra de junto de nós, fora à casa de lavar, afastara os cadáveres que estavam no chão, despira-se todo, deitara-se na laje fria. Cinco minutos depois estava morto.

“Aquele soubera vingar-se dos alemães. Eles não o mataram. Foi ele, foi ele que morreu quando quis…”

O outro facto mais impressionante, foi – como não podia deixar de ser – a chegada dos americanos a Dachau. Eu já não tinha esperanças de os ver… Mas um dia, os guardas começaram a fugir, a ser amáveis… Desconfiámos. A câmara de gases estava cheia. Eles bem queriam limpá-la. Mas não tiveram tempo. Quando um companheiro me veio dizer que os americanos estavam já no campo, desatámos os dois a rir às gargalhadas, como doidos. Depois, pedi-lhe ajuda. Levantei-me. Queria ir vê-los. Os meus 39 quilos não aguentavam a caminhada. Levei duas horas da minha barraca ao largo central do campo. Mas cheguei – e ainda tive forças para responder às perguntas:

- O seu nome?

- José Agostinho das Neves, natural de Lisboa… Residia em Paris…

Caí no chão, exausto a chorar e a rir… Voltara do Outro Mundo.

Reportagem de Fernando Teixeira, in Diário Popular, 23 de Novembro de 1945

--- Leia aqui as PARTE 1PARTE 2; PARTE 3

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2019

"Debaixo do Céu" com Irene Pimentel


No próximo sábado, dia 9, a historiadora Irene Pimentel vai estar presente na sessão de "Debaixo do Céu" que vai ter lugar no Cinema Ideal. Será pelas 17.15 horas.

Presentes vão também estar o realizador Nicholas Oulman e o produtor Paulo de Sousa... 

Um bom filme... 

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2019

«O homem que veio do Outro Mundo» (3)
O longo caminho para Dachau

Continuamos com a transcrição da entrevista dada por José Agostinho das Neves ao jornalista Fernando Teixeira em finais de 1945. O homem que terminaria a guerra no campo de concentração de Dachau continua o relato do que aconteceu durante a viagem no "comboio fantasma". Por causa das acções da resistência francesa e do avanço aliado após o Dia D, o percurso entre o campo de concentração francês de Vernet e a Alemanha, prolongou-se por meses...

Ficam também as primeiras impressões sobre Dachau.

Como já foi referido a entrevista foi tema em duas edições distintas do jornal Diário Popular. Com esta publicação vamos transcrever as primeiras linhas publicadas na edição do dia 23 de Novembro de 1945.

Título na primeira página do "Diário Popular", de 25 de Novembro de 1945.

O Homem que veio do Outro Mundo (2)

A caminho de Dachau

Dois meses de comboio para ir de França à Alemanha
A vida num campo de concentração alemão descrita por um português prisioneiro

A conversa com o meu companheiro daquele fim de tarde de Paris durou algumas horas. E o que mais me impressionava nele era a arrumação das suas recordações. Dir-se-ia que tinha escrito na memória, que folheava páginas de um livro. Foi ele que me deu a explicação:

- Não se admire. Durante meses e meses, não pude ter o prazer do isolamento. Vivi sempre, onde quer que encontrasse, lado a lado, ombro a ombro com outros homens. Não olhava para qualquer parte que não visse um rosto amargurado. Não soltava um gemido que não recebesse outro em troca. E eu que gostava de me isolar, de pensar – só encontrei remédio nesta espécie de nirvana a que me votava. Durante esses momentos, recapitulava a minha vida e fazia o possível por esquecer o que me rodeava. Tantas vezes o fiz que as imagens, as datas e as palavras, à força de repetidas, nunca mais me esqueceram.

Uma pergunta que eu queria fazer-lhe há muito tempo:

- Havia muitos portugueses nos campos de concentração onde esteve?

- Em Dachau, onde terminei a minha odisseia, conheci oito, vindos de vários pontos da Europa. Só regressei eu e outro que mais tarde vi aqui em Paris e creio que vive agora na província. Comigo no comboio seguira também outro. Em Angoulême, foi atingido por uma bala explosiva numa perna, durante o ataque dos aviões ingleses. Mas como no momento de ser transportado para o hospital, lhe foi descoberta nos bolsos uma carta, devolveram-no para o vagão e ali ficou sem qualquer socorro – à espera que a perna apodrecesse ou se curasse milagrosamente. Soube-se depois que a carta lhe fora entregue por um companheiro com o pedido de, no Hospital, a mandar para o correio. Esse companheiro tinha mulher e queria dar-lhe a ilusão de que vivia. A carta nunca chegou ao seu destino – e ele também não. Morreu pouco tempo depois, noutro vagão desconjuntado de outro comboio infernal.

Uma pausa para «ler no cérebro». E a história interrompida, contínua:

- Andávamos nove dias neste vaivém de comboios no sul da França. Impossível avançar, tais eram as destruições operadas pelo «maquis» nas vias férreas. E voltámos a Bordéus. Desembarcámos a custo. Mal nos tínhamos de pé. Mandaram-nos seguir ruas fora durante a noite e acabaram por nos metes no edifício de uma sinagoga onde ficámos dias e dias à espera do inverosímil: que os comboios pudessem seguir para a Alemanha. O templo israelita tinha sido, no seu interior, completamente devastado pela soldadesca alemã. Ainda havia montes de pedras, de madeira, de caliça. Misturámo-nos com o lixo, os ratos, as baratas, e toda a espécie de parasitas. Amontoámo-nos uns em cima dos outros a fim de arranjar lugar deitado para os doentes e feridos. O português, com a barriga da perna furada, gritava desesperadamente. Quanto sofreu o infeliz! Mal sabia ele que só dois meses depois, na Alemanha, seria tratado! E quem lhe diria que, após esta prova de resistência quási inacreditável, haveria de morrer estupidamente de uma gripe – que de ninguém tratou evidentemente!


100 homens fechados à chave

Certa vez tínhamos acabado a nossa única refeição do dia – uma malga de caldo e um pedaço de pão de cor duvidosa – quando se abriram de novo as portas da sinagoga. Íamos voltar a embarcar. Na estação, esperavam-nos mais 400 presos, entre os quais 80 mulheres, vindos não sei de onde. Encurralaram-nos em vagões como nas viagens anteriores – somente um pouco mais apertados. Em vez de 70, como até ali, éramos agora 100 homens fechados à chave com bons cadeados. A respiração era deficiente mas felizmente – com pouco nos contentávamos! – havia frestas abertas no tejadilho. Perdi de vista o português ferido, não voltei a ver o velho de barbas brancas que chorava e que ficou para sempre estendido no chão frio da sinagoga. Pôs-se-me um nó na garganta ao saber por outro prisioneiro que o pobre velho falara de mim ao morrer. Como tenho saudades do tempo em que ainda me comovia!

Como não podíamos seguir a viagem com o itinerário traçado antes, voltámos a passar por Toulouse e dirigimos-nos a Nimes, por Narbomei. A nossa chegada àquela região coincidiu com o desembarque das tropas francesas em Saint Raphael. E como a aviação americana não deixava de bombardear os arredores, o comboio parou. Começaram então oito longos dias de sofrimentos. Fechados no vagões, comendo só uma vez ao dia – um pedaço de pão coberto de bolor e uma rodela de salsicha – e não tendo mais que meio decilitro de água por 24 horas, fomos caindo doentes a pouco a pouco. A fome, a sede e o calor mudavam as expressões. Loucos ou moribundos?

Como a desgraça faz dos homens feras sem coração! Se nos visse, se visse como nos batíamos por um pedaço de pão a mais que sobejasse da boca de um doente! Depois as salsichas acabaram e foram substituídas por um tomate cru para cada vagão. Faz ideia do que seja dividir por 100 homens um tomate cru? Pois ninguém ficava sem o seu quinhão. E que ficasse! Era uma questão que nunca mais acabava – e ódios surdos e lutas e insultos.


Um batalhão de miseráveis atravessa vilas e aldeias

Quando o comboio se pôs de novo em marcha, poucos quilómetros andados, uma ponte destruída por bomba de avião cortou-nos, de novo, a passagem. Somos obrigados a descer e a abandonar as nossas bagagens, pobres bagagens de roupas sujas e velhas e de retratos amarelecidos pelas lágrimas, pelo suor e pelo calor – restos de uma vida que ficou para trás.

Fomos a pé de Roquemaure a Sorgnes, cerca de 20 quilómetros através de vilas e aldeias. Quando me lembro dessa caminhada!... Batalhão de miseráveis, descalços, rotos, alguns quási nus, olhos esgazeados, lábios gretados da febre, pés inchados, mãos descarnadas sempre em busca de ervas ou raízes no chão para levar à boca escaldante, ávida, sôfrega do que quer que fosse trincável!
Atrás e aos lados vinha a matilha dos “cães de guarda”, espingardas e metralhadoras prontas a disparar se um nós ficava para trás, coronha descarregada na cabeça do que não tivesse força para andar.

Mais adiante esperava-nos outro comboio. Voltámos aos vagões. E tudo se passou, dias e dias, da mesma maneira, até chegarmos a Pierreffite, onde novo ataque de aviação nos esperava. Novo e trágico ataque. Ah! Se eles soubessem que nós não éramos alemães! Mas tudo era impossível para lho fazer ver. Nem nos restava o ardil das camisas a fazer de bandeira. Qual de nós ainda tinha camisa?
Foi verdadeiramente infernal aquilo. Dessa vez o ataque era feito à bomba. O meu vagão não tinha sido atingido, mas quando saímos – porque a locomotiva fora pulverizada por um impacto directo – verificou-se que nove prisioneiros estavam mortos e 20 gravemente feridos. Estendidos na relva de um prado à beira da linha os infelizes entoavam uma canção trágica feita de dezenas de gritos, de brados de raiva  - de palavras sem nexo em várias línguas. Socorremo-los como pudemos porque os alemães – “valentes” como já sucedera anteriormente – tinham-se refugiado no bosque e vigiavam-nos com as metralhadoras, não fosse algum aproveitar a ocasião para fugir. 

Rasguei as calças que levava na trouxa da roupa e fiz ligaduras. Outros procuraram fazer o mesmo. Outros limparam feridas e fizeram pensos com ervas e folhas de árvores. Mas os nosso “doentes” não resistiram na maior parte, aos “tratamentos”. Um morreu-me nos braços. Outro pôs-se em pé, desvairado, louco e desatou a fazer sinais inúteis aos aviões que ainda se viam no ar. Conseguiu o que queria. Uma rajada de metralhadora alemã acabou com ele.


A chegada a Dachau

Estamos a conversar há horas. Aproveito uma pausa para lhe propor um pequeno passeio à beira do Sena. A noite vem caindo aos poucos. Encontramo-nos os dois cansados: ele de falar, eu de o ouvir com atenção para não perder uma palavra. Seguimos por um passeio da margem esquerda. Caminhamos lado a lado, sem proferir palavra, a gozar a quietude e o encanto da rua que se recolhia à sombra dos chorões. E pisávamos voluptuosamente folhas amarelecidas, esquecidos por momentos, do mundo que ele vivera – do “Outro Mundo”.

Foi o meu companheiro que voltou a falar outra vez:

- Por fim, e depois de muitas peripécias, chegámos à Alemanha. Tinham-se passado dois meses após a nossa saída do campo de concentração em França. Dos 500 que éramos a princípio, dos 900 que fomos depois em Bordéus, só restava metade. Os outros tinham morrido - ou fugido.

- Fugido?

- Sim. Nunca soube como, mas alguns ainda tiveram forças para fugir nas andanças de subor e descer dos vagões. Onde teriam ido parar? No estado de saúde e fraqueza em que estavam, talvez não tivessem andado mais de 500 metros. Mas quem sabe medir o poder da resistência humana à dor e à fome?

- Todos os mortos foram vítimas dos bombardeamentos e da fome?

- Muitos não resistiram também aos maus tratos. As coronhas das espingardas alemãs fracturaram muitos crânios.

Uma nova pausa. Paramos junto a uma alfarrabista. Olho um velho volume, sujo, carcomido pelo uso. Lemos os título: “Viagens  de turismo na Alemanha”. E desatamos a rir à gargalhada. Depois ele volta a contar:

- Se a viagem fora cruel, medonha, desumana, a nossa recepção no campo de concentração de Dachau foi ainda pior. Mal as portas dos vagões forma abertas, cães enormes saltaram para dentro deles ensinados na missão de nos expulsarem depressa. Os guardas vociferavam o maldito “Alles raus!”. Fugíamos, com igual temor, aos homens e aos cães, saindo dos vagões aos trambolhões, a cair uns por cima dos outros.

Chegados ao campo, após uma marcha de algumas centenas de metros, reuniram-nos no meio de uma praça triste ladeada de toscas construções. E ali ficámos toda a noite, deitados no chão, quási despidos, sem nada com que nos abrigar. No dia seguinte, depois das formalidades do registo de entrada, fomos conduzidos aos serviços de recepção. Aí despojaram-nos de tudo quanto possuíamos. Ficámos nus – à espera de um “barbeiro” que nos rapou da cabeça aos pés. “Vestiram-nos” então umas calças e um casaco em farrapos, herança de um pobre prisioneiro que morrera.

Reportagem de Fernando Teixeira, in Diário Popular, 23 de Novembro de 1945

--- Leia aqui as PARTE 1PARTE 2PARTE 4.