“A população aparentava estar calma, silenciosa, disciplinada mesmo nas localidades recentemente ocupadas, seguindo resignadamente os movimentos de evacuação forçada, ou trabalhando nos campos quasi nas primeiras linhas, nas zonas das batarias de artilharia, sob acção dos bombardeamentos dos seus nacionais, demonstrando o seu apego à terra, próprio de uma população agrícola”.
Esta é um das impressões da viagem à frente russa que se podem encontrar no Relatório da Missão Militar à Alemanha e à Frente Oriental, elaborada por cerca de uma dezena de oficiais portugueses após um périplo de quase dois meses. Entre 12 de Agosto e 10 de Outubro de 1942 tomaram “directo contacto com os mais recentes ensinamentos da guerra moderna”.
Entre as impressões da viagem os militares portugueses destacam também que, nas aldeias que visitaram, mal se viam homens adultos. A população resumia-se quase sempre a velhos, mulheres e crianças.
Reportagem da visita dos oficiais portugueses à frente oriental em Agosto/ Setembro de 1942.
As imagens foram publicadas na revista "Sinal" de Dezembro de 1942.
O relatório, que se encontra no Arquivo Histórico Militar (AHM), impresso em formato de livro, tem 295 páginas, com fotografias mostrando os elementos da missão nas várias visitas que realizaram à “frente oriental” e também à Alemanha.
O trabalho é bastante ilustrado sendo possível encontrar outras fotografias, mapas e esquemas que mostram armas, equipamentos, disposições tácticas, sistemas de ataque e de defesa das várias unidades e especialidades.
Num conjunto de organogramas mostram-se a estrutura e organização do exército alemão, nas suas diversas especialidades, começando na mais pequena das unidades até um corpo de exército. Há também registos de como se organiza um quartel-general numa frente de combate ou um Estado-Maior.
O relatório não fica completo sem uma colecção de ilustrações, legendadas em alemão, que mostram muito do material utilizado pelos russos, especialmente os carros de combate como o KV-1, o T-34 ou os Matilda, estes últimos de fabrico britânico.
Os 12 oficiais portugueses que partem para esta missão em 1942 são o Coronel Teles Ferreira de Passos (director do curso de
estado maior); o major Frederico Mário de Magalhães Meneses Vilas Boas Vilar; os
capitães Manuel Alcobia Veloso, Carlos Miguel Lopes da Silva Freire, Mariano
Augusto Lopes Pires, Afonso Magalhães de Almeida Fernandes, José Ferreira dos
Reis e Fernando Augusto Soares da Piedade; Os tenentes Alfredo José Ferraz
Vieira Pinto de Oliveira, Afonso Lopes Franco, João António da Silva e Alexandre
Nobre dos Santos
Esta visita à “frente oriental” começou por envolver 12 oficiais portugueses. São professores ou alunos recém-formados do curso de Corpo do Estado-Maior e pertencem às especialidades de artilharia e engenharia.
A viagem para Berlim é feita em grupos de quatro, através de voos da Lufthansa, com partida da Granja do Marquês, em Sintra , entre 12 e 14 de Agosto.
A 22, ainda em Berlim, o tenente de artilharia Lopes Franco vê-se obrigado a regressar a Lisboa. Necessita de uma cirurgia e cuidados médicos prolongados. É a primeira baixa da missão.
Na capital alemã fazem turismo antes de visitar escolas de infantaria, artilharia, pioneiros e tropas couraçadas. Passam ainda por fábricas de material bélico.
É só nos últimos dias de Agosto que se deslocam para a frente de batalha, chegando mesmo à zona do Kursk, onde no ano seguinte vai acontecer o maior confronto de tanques da história com uma vitória russa.
No dia 31, em solo russo, passam por um hospital de campanha e por um campo de instrução, onde assistem a exercícios de fogo real envolvendo infantaria e artilharia.
No dia 2 de Setembro, no quartel general da 88ª divisão alemã, em Bogdanovo, assistem ao fim do interrogatório de “três desertores de três raças diferentes (turco, caucasiano e mongol)”. Nos dias seguintes visitam diversas zonas da frente.
A 6 encontram-se nos bosques perto de Bol-Wereika, quando são alvo da artilharia russa. Apesar de alguns obuses caírem perto da comitiva, a noite termina num jantar acompanhado por “um coro de cossacos com fardas alemãs”.
As recordações não seriam todas tão boas como esta.
PK Pinconelly foi o fotógrafo alemão que acompanhou a delegação portuguesa durante toda a missão à frente oriental.
O dia 8, já no Kursk, começa pela visita a uma igreja ortodoxa “transformada em museu e agora reaberta para culto pelos alemães”, e segue depois para uma base aérea, onde se dá um acidente que vai revelar-se mortal:
“Com assistência do General de aviação Von Bilowius visitou-se ainda a esquadra de aviação de combate BOELCKE, onde pelas 12 horas, o engano no decorrer duma demonstração com uma bomba incendiária de avião, que se supunha não explosiva, provocou ferimentos em oficiais e praças alemães e em 9, dos dez oficiais da Missão”.
Dos nove portugueses feridos quatro são evacuados para Berlim. Tratavam-se do chefe da missão, coronel Teles Ferreira de Passos, e dos capitães de engenharia Carlos Miguel Lopes da Silva Freire, Mariano Augusto Lopes Pires e Almeida Fernandes.
Os médicos alemães consideram os ferimentos ligeiros, mas Mariano Lopes Pires, vem a falecer, na sequência da ruptura de uma artéria na noite de 15 para 16 de Setembro (ver
Um Morto Portugês na Frente Russa).
A maior parte dos membros da delegação portuguesa vão regressar a Portugal, nos dias 16 e 17 de Setembro.
Participar na luta contra o comunismo
As missões militares aos vários países envolvidos no conflito nada têm de anormal. Oficiais portugueses estiveram também em Inglaterra ou Itália durante os anos da guerra.
E esta é apenas uma das missões portuguesas à frente oriental . No AHM podemos encontrar informações de pelo menos três delas envolvendo militares do exército. Já referimos a que aconteceu em 1942, mas há duas outras, que decorreram quase em simultâneo, no ano de 1941.
Uma outra, apenas com oficiais da GNR, teve também lugar naquele ano.
O convite para participar nestas iniciativas foi alemão, como se depreende de uma carta enviada à Legação alemã em 9 de Agosto de 1941.
O Sub-Secretário de Estado da Guerra, Santos Costa, informa o adido militar Major Von Brockdorff que era agora “oportuno tomar uma decisão quanto ao envio de missões militares destinadas a visitar o teatro de operações da frente oriental ou a tomar conhecimento com os mais recentes métodos de guerra moderna, assunto já em tempos abordado (…) e agora de novo tratado”.
Recepção na Legação Lemã dos oficiais potugueses antes de realizaram a visita à Alemanha e à frente oriental em Outubro de 1941.
Esta fotografia e a seguinte foi publicada na edição de 5 de Novembro de 1941 da revista Esfera.
(Fonte: Hemeroteca de Lisboa)
A aquisição recente por parte das forças armadas nacionais de 101 obuses ligeiros e 24 pesados aos alemães, e a necessidade de conhecer melhor “os método de tiro e de manobra” destes equipamentos, são a principal razão para concretizar o pedido.
Santos Costa solicita que os oficiais estagiem em escolas e artilharia, mas insiste na ida destes à “frente oriental”.
“Os ensinamentos colhidos no próprio ambiente da guerra seriam certamente muito mais proveitosos e simultaneamente alguns militares portugueses teriam o ensejo de tomar parte na luta contra o comunismo, aspiração que muitos deles teriam o maior empenho em satisfazer”.
Uma frase, no mínimo, curiosa certamente com mão do próprio Salazar já que este é o titular da pasta da Guerra para além de Presidente do Conselho e de ministro dos Negócios Estrangeiros.
Em Outubro estão prontas duas missões para a Alemanha. Uma é constituída por uma dezena de oficiais de artilharia e outra por três oficias de estado-maior.
Ambas partem ao mesmo tempo – 17 de Outubro - mas terão presença distinta na Alemanha. O único relatório que foi possível localizar é o dos três últimos oficias de estado maior, comandados pelo Major Gomes Araújo.
Enquadrados por forças alemãs, percorrem escolas de formação diversas, mas é a “frente oriental” que vai preencher parte importante do seu relatório, também um livro com pouco mais de 200 páginas, mas sem fotografias ou imagens.
A comitiva que se deslocou à frente oriental em 1941
integrava os oficiais de estado maior majores Manuel Gomes Araújo, Júlio Botelho
Moniz e capitão José Beleza Ferraz. A delegação da rama de artilharia era constituída
pelo major João da Costa Ferreira Pinto; capitães António Libório, José Augusto
da Fonseca June, Espirito Santo, José Virgolino, João Santos e Silva; tenentes
Luis costa Campos e Menezes, Jesus Armigio, Delgado e Silva, António Brancamp Sobral.
(Fonte: Hemeroteca de Lisboa)
As áreas de visita são neste caso Luga e Leningrado onde a comitiva testemunha vestígios de combates recentes e se surpreende com algumas das tácticas utilizadas. “Um outro facto curioso a assinalar é o seguinte: em cima de cada um dos carros russos vinham 10 atiradores os quais, como era de prever, foram mortos pelos tiros das metralhadoras e espingardas alemãs. Visitou-se o local onde ainda se encontravam os carros e até, queimados a seu lado, alguns dos seus tripulantes”
Spínola em Leningrado
Uma das questões que tem sido referida várias vezes é a presença de António de Spínola numa destas comitivas que em 1941 visitou a Rússia.
Não me foi possível encontrar, entre os documentos do AHM qualquer referência à sua presença.
Há no entanto uma nota neste relatório de 1941 que refere que “à Missão do EME (Estado Maior do Exército) juntou-se em Berlim, uma missão de oficiais da GNR tendo a visita à frente sido feita em conjunto”.
Fotolegenda publicada na edição de Dezembro do Jornal oficial da GNR "O Soldado".
Spínola deverá ter integrado esta delegação como tenente.
Olhando para a biografia verificamos que Spínola era, em 1941, um jovem tenente, ajudante de campo do comandante da GNR, General Monteiro de Barros, por acaso, também seu sogro.
Deduzo por isso que a comentada presença e Spínola em Leningrado tenha acontecido quando estas duas delegações se deslocaram em conjunto até à Frente Oriental.
Carlos Guerreiro