Publicamos a segunda parte da entrevista com o professor Avelãs Nunes, professor de história da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e autor do livro “O Estado Novo e o Volfrâmio (1933-1947)", onde realiza um estudo sobre o impacto económico e social da exploração do volfrâmio em Portugal durante a 2ª Guerra Mundial.
(Leia AQUI a primeira parte da Entrevista, publicada no dia 24 de Outubro de 2013)
Apesar da censura os cartoonistas portugueses também abordaram como puderam a febre do minério que assaltou o país.
Diário de Notícias, 20 Março de 1941.
Aterrem em Portugal: Há descrições de aldeias desertas, abandonadas porque se partia com a febre do volfrâmio. É um facto ou há algum exagero neste quadro?
J.P. Avelãs Nunes: Aconteceram situações próximas dessa em zonas onde a actividade económica normal foi interrompida devido à guerra. Como não havia forma de ganhar um salário, as pessoas viram-se obrigadas a migrar para locais onde existiam explorações de volfrâmio.
Verificou-se no Alentejo, por exemplo, onde a exploração de pirites de cobre foi quase interrompida e os mineiros ficaram sem trabalho. Aconteceu em S. Domingos, em Aljustrel, no Lousal e noutros locais durante o conflito. Exploravam-se metais considerados pouco relevantes para o esforço de guerra — ou que existiam noutros locais —, de baixo valor por tonelada.
Além do preço baixo de alguns metais havia a questão do transporte. Os navios estavam ameaçados de afundamento pelos submarinos alemães. O Reino Unido, por exemplo, quase não importou minério de cobre. Com desemprego em escala significativa no Alentejo, os mineiros procuraram trabalho noutros locais. Migravam pois sabiam da busca desesperada de mão-de-obra mineira qualificada no interior centro e norte, onde crescia a extracção de volfrâmio.
Perto das concessões de tungsténio, as pessoas viviam nas minas durante a semana mas regressavam às suas aldeias no fim de semana. De um modo geral, não se pode, pois, falar de uma desertificação das aldeias. Para além do mais, em inúmeros casos a migração era feita pelos homens em idade produtiva, enquanto as mulheres, as crianças e os idosos ficavam nas localidades de origem a assegurar actividades permanentes dos agregados familiares.
Muitas mulheres trabalhavam no volfrâmio, mas estas normalmente residiam em povoações próximas das minas. Empregavam-se na separação de minério, no “Kilo” e no “Pilha”, no comércio informal (na “candonga”) e no contrabando.
Pode-se, ainda, chamar a atenção para um outro fenómeno relevante. Chegado o momento de ingressar na actividade mineira formal, quem era remediado e tinha contactos nas chefias intermédias das empresas concessionárias, trabalhava à superfície. Os mais pobres e com menos conhecimentos iam para o fundo da mina, onde o dia-a-dia era mais duro, com mais acidentes e doenças profissionais.
Existiram, também, as chamadas “aldeias de viúvas”, mas essa expressão tem a ver com as mortes causadas pela silicose, uma doença comum entre os mineiros do tungsténio porque as condições de higiene no trabalho mantinham-se muito deficientes. A silicose é uma doença respiratória irreversível que causa incapacidade e pode levar à morte quando os pulmões ficam demasiado afectados.
A rocha encaixante dos filões de volfrâmio tinha muita sílica. As brocas dos martelos pneumáticos, as explosões e o arrastamento de inertes levantavam muito pó que os operários inspiravam. A poeira de sílica é quimicamente muito activa e quando as partículas entram em contacto com os pulmões causam cicatrização. Se esta atinge uma determinada dimensão, as pessoas deixam de respirar.
Aterrem em Portugal: Em que condições trabalhavam estas pessoas?
J.P. Avelãs Nunes: As condições eram difíceis mas os mineiros aceitavam-nas porque a vida da maioria dos portugueses não se apresentava menos dramática. As minas continuavam, apenas, a pobreza e a precariedade que muitos conheciam. Os acidentes e as doenças profissionais eram frequentes.
Trabalhar muitos dias a perfurar rocha ou a arrastar minério significava que as pessoas ficavam a sofrer de silicose. Após cinco ou seis anos de actividade, a doença atingia um nível muito elevado, gerando incapacidade grave ou morte.
À medida que as minas se tornavam complexas, com galerias a maior profundidade, os mineiros passavam a tomar as refeições no subsolo. Normalmente colocavam os explosivos e as descargas aconteciam imediatamente antes das refeições. O tempo de descanso era, assim, passado num ambiente saturado de poeira de sílica.
A iluminação era garantida através dos gasómetros. Utilizavam carbonato de cálcio, o qual, em contacto com a água, gerava uma chama. Tinham, no entanto, uma capacidade de iluminação muito baixa.
Os mineiros não utilizavam botas especiais ou capacetes entre outras razões porque estes eram relativamente caros e as empresas não os forneciam. Se estavam longe de casa e dormiam nas camaratas das empresas, usavam a mesma roupa durante toda a semana, sem tomar banho.
As camas nas camaratas eram, frequentemente, uma enxerga com palha ou mato e um cobertor. Havia infestação permanente de piolhos e de percevejos.
À superfície, nos regimes do “Kilo” e do “Pilha”, como se verificava um menor ou nenhum controlo técnico, registavam-se mais desmoronamentos nas sanjas e nos poços. O uso indevido de explosivos causava, também, muitos acidentes.
Dizer que os “volframistas” ganhavam “dinheiro fácil” — expressão muito em voga naquele tempo — resulta de uma interpretação errónea. Poderia parecer fácil a elites locais ou nacionais pouco habituadas a observar camponeses pobres com acesso a bens e a serviços “de luxo”. Implicava, no entanto, trabalho fisicamente violento e/ou riscos significativos.
Apesar de a guerra ter obrigado as empresas dos países beligerantes a melhorar as condições de trabalho e de vida, os martelos pneumáticos com jacto de água, obrigatórios no Reino Unido, eram pouco utilizados em Portugal. Houve, pois, uma transferência de tecnologia já ultrapassada para o nosso país.
Ocorreu, igualmente, a contaminação de lençóis friáticos, cursos de água e terrenos agrícolas, uma vez que a exploração de jazigos de volfrâmio gerava a libertação de poluentes químicos a partir do esgoto das concessões e das escombreiras.
Algumas notícias publicadas na imprensa em 1941, antes do noticiário sobre o tema ser proibido pela censura.
Aterrem em Portugal: E quando, em Junho de 1944, António de Oliveira Salazar decidiu interromper a exploração de minérios de tungsténio criou-se um vazio?
J.P. Avelãs Nunes: Sim e não. As Minas da Panasqueira chegaram a empregar mais de 11000 pessoas (6000 na mina e 5000 no “Kilo”). Se acrescentarmos familiares, deparamos com um quantitativo de pessoas que superava o da generalidade das sedes de concelho portuguesas.
Fora do contexto da guerra económica, esta situação dificilmente seria mantida. Em Junho de 1944 ou em Maio de 1945, a passagem para uma economia de paz teria de acontecer e, com ela, a desvalorização do preço dos minérios de volfrâmio.
As explorações informais e as minas mais pequenas só funcionavam em contexto de conflito militar global e mesmos as maiores, como a Panasqueira ou a Borralha, também reduziram muito a actividade em período de paz.
Esta evolução não era desconhecida e havia a percepção de que acabaria por suceder. No entanto, a opção de interromper unilateralmente toda a extracção de tungsténio, assumida pelo Governo do Estado Novo por razões ideológicas, antecipou e agravou essas dificuldades.
Portugal poderia ter negociado soluções alternativas com os Aliados. Uma tal hipótese foi, mesmo, aventada por Londres e Washington no final de 1943 e início de 1944.
Talvez o Chefe da ditadura tenha recusado a proposta para não ter de assumir uma rotura com o Eixo, para explicitar a sua discordância com a decisão de forçar o Terceiro Reich e a Alemanha a uma rendição incondicional, para ‘castigar’ o “materialismo” e a falta de respeito pelas hierarquias sociais tradicionais manifestados pelos “volframistas”.
Carlos Guerreiro
<----------------------------------------->----------------------------------------->
Leia mais sobre a questão doVolfrâmio.