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quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Lisboa, Arte e Guerra
Negócios e boatos pelas ruas de Lisboa

“Falta-lhe todo e qualquer patriotismo, é completamente egoísta e sem quaisquer escrúpulos”. É assim que serviços secretos americanos descrevem o francês Jean Rolland Ostins, um negociante de arte com ligações suspeitas e perigosas que, em 1941, se instalou em Lisboa.

Francês, colaboracionista desde a primeira hora e com ligações privilegiadas ao governo de Vichy, Ostins é uma das mais intrigantes personalidades referida nos diversos relatórios e fichas coligidas pelos serviços secretos americanos OSS em Lisboa no ano de 1945.

Quando os alemães conquistam França tem pouco mais de quarenta anos e é um negociante de arte relativamente conhecido em Paris. A falta de escrúpulos transformam-no rapidamente no colaborador perfeito de Bruno Lohse e da unidade especial Rosenberg.

O primeiro é o homem de confiança e fornecedor de obras de arte do Marechal Goering - um dos coleccionadores mais sedentos do regime - e a Unidade Especial Rosenberg (ERR) é responsável pela política cultural do Reich, liderando o saque de milhões de peças pertencentes a colecções particulares e públicas em países ocupados. Um espólio que deveria integrar uma enorme rede museus sonhada por Hitler no seu Reich e, especialemente, o grande Museu de Arte de Linz, na Áustria - uma obra que deveria começar logo que a guerra acabasse.
 

Uma das versões do quadro "Salomé" de Ticiano terá passado por Lisboa quando uma negociante estrangeira o traficou para Inglaterra. A mulher era também suspeita e vender diamantes enviados pelos alemães. 

Os colaboradores de Lohse e da ERR ajudam na localização das colecções e de obras individuais. Conhecedores dos meandros do negócio sabem quem são os colecionadores e quais as obras que possuem. As colecções pertencentes a judeus são especialmente apreciadas pois são simplesmente apreendidas. Galerias públicas também não escapam ao apetite deste enorme polvo.

Para além de receberem comissões muitos destes colaboracionistas têm acesso privilegiado às “sobras” do processo. Peças realizadas por judeus ou obras consideradas “degeneradas” – praticamente todos os modernistas - não têm lugar na cultura e no gosto alemão. Entram no circuito subterrâneo controlado por estes negociantes que conseguem não só importantes divisas para os nazis como também acumular importantes fortunas.

Ostins está envolvido nestes negócios desde cedo, mas em 1941 surge repentinamente em Lisboa. A sua chegada coincide com um escândalo no Governo de Vichy que envolve o ministro dos abastecimentos, Jean Louis Achard. A ineficácia na gestão dos recursos alimentares e no sistema de distribuição de senhas de racionamento trazem milhares de franceses para a rua em protesto, obrigando à demissão do responsável político.

Não é fácil perceber se a sua saída de França está ligada a este acontecimento ou se se tratou de uma coincidência. Certo é que as suas ligações políticas em França lhe flanqueiam as portas da Embaixada onde é tratado como um VIP.

Apresenta-se inicialmente como representante da Cruz Vermelha e do Socorro Nacional de França, mas as suas actividades são suspeitas até para os responsáveis da embaixada. A certa altura começam a evitar encontros e reuniões.

Nos seus negócios utiliza a mala diplomática da Embaixada Francesa para traficar diamantes que vende por bom lucro em Lisboa. Os navios da União Fabril, que ligam Lisboa a Marselha, servem para traficar de tudo incluindo obras de arte. Nos diversos relatórios elaborados pelos serviços americanos regista-se o movimento de grandes somas de dinheiro entre a Argentina e a Europa.

Cartas interceptadas pelos serviços americanos revelam negócios com quadros e outros objectos através de uma rede de negociantes e amigos que se estende da Europa para a América do Sul e para os EUA. Um desses sócios, instalado em Nova Iorque procura, por exemplo, sensibilizar Ostins para encontrar e enviar quadros "com qualidade de museu", deixando claro que telas de "Ruoault ou de Picasso" são as que melhor se vendem.

Todos estes negócios são feitos sob cobertura da empresa LAOS, que mantém em sociedade com uma britânica. A vida não parece correr-lhe mal, mas o fim da guerra cria-lhe dificuldades inesperadas. Em 1945 é preso pela PVDE durante alguns dias. Nas suas reclamações diz não entender as razões porque foi detido… Libertado regressará às Caldas da Rainha onde ficará a aguardar ordens..

Os seus passos perdem-se por aí... Talvez as e enomes quantias acumuladas na América do Sul lhe tenham servido de porto de abrigo.


Uma longa lista de nomes

Ostins é apenas o nome que mais se destaca numa comprida lista de negociantes e colecionadores de arte que povoavam a Lisboa da 2ª Guerra Mundial.

Alguns são referidos como completamente insuspeitos. É o caso de Calouste Gulbenkian identificado apenas como “coleccionador de arte português” ou Ricardo Espírito Santo que merece mais algumas linhas, sendo apresentado como um colecionador “bem conhecido” que deve ser mantido sob vigilância, pois “qualquer objecto de importância ser-lhe-á certamente oferecido”.

Mas entre as mais de vinte fichas individuais com informações sobre negociantes, galeristas e colecionadores portugueses ou a viver em Portugal, surgem outras personagens com relações pouco claras.

Uma alemã, chamada Margareth Eisen, ou Cifla Duarte, divorciada de um oficial português, era suspeita de ter traficado o quadro “Salomé” de Ticiano, para o Reino Unido, onde estaria escondido no cofre de um banco. Era também acusada - com o sócio Ruy D’Andrade – de vender diamantes que lhe chegavam através dos alemães.

Os estrangeiros John Conrad (ou Konrad), Leon Josippovicci e a portuguesa Elfrida Marques Pereira eram  suspeitos de utilizarem a sua galeria, localizada na Rua Nova da Trindade, para traficar diversos objectos de arte, especialmente tapetes originários de colecções pilhadas.

Uma certa senhora Wohwill, na Estrada de Benfica, vendia visas para passaportes e obras de arte enquanto Jackes Kugel, suspeito de estar envolvido em negócios sombrios estava também envolvido na espionagem ao lado dos alemães.

Entre os portugueses encontravam-se Fausto Albuquerque, que teria tido importantes negócios com os italianos antes da queda de Mussolini e ainda Paiva Raposo, uma mulher que andara a oferecer obras de arte em vários locais. Alegava que se tratavam de peças de importantes famílias portuguesas com necessidades económicas. Os americanos consideravam-na uma excelente testa de ferro para colocar obras pilhadas no mercado.


O alemão Buchholz

Entre os vários nomes investigados surge também e com algum destaque o alemão Karl Buchholz.

O fundador da livraria, com o mesmo nome, na baixa lisboeta é referenciado em diversos relatórios que tentam reunir provas sobre as suas actividades. Numa deleas resume-se a sua história em poucas linhas: “Antigo negociante de Berlim alega ser um refugiado porque a avô era de origem judaica. Suspeito de ter trabalhado para altas individualidades nazis e de ter para venda obras de arte pilhadas”.

Os americanos queriam perceber como alguém conseguia sair da Alemanha, em 1943, com “meio milhão de marcos em livros”. Garantiam também que mantinha relações pessoais e comerciais com Ribbentrop e Goebbels.

Os indícios recolhidos apontavam para a possibilidade do negócio de Buchholtz servir de cobertura para o tráfico de quadros para a América do Sul.

Já com a guerra a alastrar tivera galerias em Berlim e Budapeste, fazendo parte importante dos seus negócios com aquilo a que o regime nazi chamava “arte degenerada”. Tinha estreitos contactos com outros negociantes em Espanha,  Suíça, Alemanha e Estados Unidos. Neste último país havia até uma Galeria Buchholz, Abrtea por um ex-sócio de origem de judaica e que agradecia desta forma o apoio de Buchholz durante o seu processo de fuga.

Na sua livraria em Lisboa foram encontradas fotografias de três quadros que estavam para venda. As pinturas pertenceriam a um negociante Suíço. Buchholz não escondia aliás a sua forma de conduzir o negócio das artes. Estava disponível para, a troco de uma comissão, vender quadros e outras peças de arte.

Parte importante destes negócios pouco claros vão desaparecer do olhar público em Março de 1945 quando, após diversas pressões dos aliados, Salazar aprova um decreto onde declara ilegais e inválidos os negócios envolvendo bens artísticos pilhados em países ocupados pelos alemães. A legislação não tem contemplações mesmo para com compradores que desconheciam estar a adquirir bens roubados.

nada disto impede que, nos últimos meses da guerra, Lisboa continue a ser uma cidade onde correm todo o tipo de rumores e boatos. Fala-se, por exemplo, de um cofre gigante recentemente instalado na Legação Alemã e que estará cheio de quadros.

Apesar disso, em 1945 os aliados consideram que não deverá existir em Portugal muita arte pilhada, mas revelam a necessidade de manter uma vigilância apertada pois suspeitam que o país possa servir para armazenar e esconder algumas obras até que a perseguição aos nazis acalme..

Não será por isso estranho que, em 1948, surjam notícias de um Goya que estaria para venda num circuito subterrâneo da capital portuguesa.

Carlos Guerreiro

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