Pesquisar neste blogue

quinta-feira, 25 de junho de 2015

A morte do Ganda

“Uma tremenda explosão atingiu o casco por estibordo entre a ponte e a casa das caldeiras. (…) O costado sofreu um rombo de grandes dimensões por onde podia passar um comboio”. O comandante do Ganda descrevia assim o ataque ao seu vapor, num testemunho prestado à marinha, dias depois do trágico acontecimento.

Fotografias - acima e seguintes - publicadas na revista Mundo Gráfico de Junho de 1941.
(Hemeroteca de Lisboa)

O navio português, que partira de Lisboa com destino às colónias africanas, foi atingido por um torpedo quando se encontrava parado sob a água, a várias dezenas de milhas da costa marroquina. Quinze minutos antes da explosão o Ganda tinha sido “sacudido com alguma violência dando a impressão que tinham batido em algum objecto submerso”.

O comandante Manuel Paião mandara parar as máquinas para inspeccionar o interior do casco. Apenas num tanque foi encontrada alguma água, mas nada de significativo, e não houvera tempo para mais averiguações pois a explosão aconteceu dez minutos depois do choque com o “objecto submerso”. A tripulação ficou com a certeza que se tratara de um primeiro ataque do submarino, mas que o torpedo não explodira.

Face aos estragos foi dada ordem imediata para que se abandonasse o navio, mas das quatro baleeiras que estavam a bordo uma ficou destruída na explosão, outras duas viraram-se devido ao estado do mar. O capitão ordenou também o lançamento à água de uma lancha com motor, utilizado normalmente para facilitar as manobras e fazer o reboque nos portos africanos onde não existiam apoios convenientes.

Das 72 pessoas que seguiam a bordo, 50 eram tripulantes, 5 tratadores de gado e 15 eram passageiros. Contabilizavam-se também 2 clandestinos.

Pouco depois das 19.30 horas, do dia 20 de Junho de 1941, Manuel Paião tomou lugar na única baleeira salva-vidas que sobreviveu e recolheu algumas pessoas que estavam na água. Reuniu 26 náufragos, enquanto na lancha tomavam lugar pelo menos uns quarenta.

Um fino periscópio com uma janela redonda foi visto a passar a uma dezena de metros. Mais tarde o submarino emergiu realizando diversos disparos de canhão na tentativa de afundar o navio, mas às quatro da manhã, numa altura em que a baleeira já se encontrava bastante afastada, ainda se conseguia ver o clarão das chamas que lavraram de forma intensa.


Ironias de guerra 

Como outros navios portugueses este também ostentava as marcas da neutralidade. No casco, com letras brancas de metro e meio, lia-se GANDA-PORTUGAL . Para além da bandeira no mastro, encontrava-se, bem visível sob a ponte uma outra bandeira de lona - com 3 por 2 metros - que era iluminada à noite. De nada serviram…

No meio da confusão as duas embarcações com sobreviventes seguiram rotas distintas e não voltaram a avistar-se.

É natural que o comandante Manuel Paião se apercebesse da ironia da sua situação. Cerca de um mês antes, tinham recolhido 24 sobreviventes do navio tanque britânico “British Grenadier” e agora eram eles os náufragos. O britânico fora afundado a 22 de Maio ao largo da Guiné, também em resultado do ataque de um submarino. Os náufragos ingleses tinham passado pouco tempo no mar. O vapor português e um outro espanhol, recolheram os 49 sobreviventes que deixaram em Freetown, na Serra Leoa, dois dias depois. Agora era ele que enfrentava a imprevisibilidade do destino num pequeno bote…

A explosão tinha danificado o rádio do Ganda e não fora transmitida qualquer mensagem de socorro. Encontravam-se ao largo de Marrocos e tiveram sorte, pois logo na manhã seguinte foram avistados pelo vapor de pesca português “Fafe”. As notícias do desastre e do salvamento da baleeira chegaram a Lisboa, mas nada se sabia da lancha que tinha a maior parte dos sobreviventes.


A espera que desespera

O comandante tinha a certeza de que pelo menos quatro dos seus tripulantes tinham morrido na explosão. Logo que se soube do desastre a Marinha de guerra enviou um navio para a zona e a Aviação Naval patrulhas para localizar os sobreviventes da lancha. O mesmo fizeram aviões franceses baseados em Casablanca. Tanto uns como outros não tiveram sorte.

A sede da Companhia Colonial de Navegação (CCN), na rua Instituto Virgílio Machado, colocou a bandeira a meia haste, enquanto recebia familiares dos náufragos, representantes de outras companhias marítimas, militares e elementos do governo.

Os jornais relatavam as movimentações na sede da CCN e a falta de notícias. Sabia-se que a bordo da lancha não havia alimentos ou gasolina suficientes que permitissem chegar a algum destino. Não era certamente o melhor tipo de embarcação para se ser náufrago… Fora apenas um recurso de última hora. A passagem dos dias tornava o ambiente cada vez mais fúnebre.


Na tarde do dia 24 o ambiente desanuviou com notícias chegadas de Huelva, no sul de Espanha, que davam conta da presença dos náufragos naquele porto.

Foi já numa altura de desespero – três dias depois do torpedeamento - que o comandante José Perez Florêncio, do pesqueiro espanhol "Ventura Gonzalez", os descobriu. O arrastão encontrava-se a 80 milhas da costa marroquina, carregado de peixe, quando se apercebeu da presença da lancha.

A bordo estavam 41 sobreviventes, entre eles cinco mulheres e uma criança, que vão merecer atenção especial pela imprensa nos dias seguintes: “De uma maneira geral, as senhoras portaram-se bem, e deram moral a todos, mesmo nos momentos em que a sede, a tragédia do mar imenso sem farol, as angústias e a fome e até o frio, pois algumas vinham quasi nuas, as obrigavam a desfazer-se em lágrimas, elas foram dignas. Elevavam as mãos ao céu e pelavam para Deus”, escreveu o Diário de Lisboa, que na tarde de 25, relata as conversas tidas ao telefone com o cônsul português, o comandante Florêncio e diversos sobreviventes.

Ficamos também a saber que uma das mulheres, a dona Rosa de Araújo Ribeiro “teve uma grande crise, que felizmente se debelou” e que um miúdo de 8 anos chorou horas seguidas com sede. Para o acalmar deram-lhe água salgada…

Trinta e sete sobreviventes chegariam de autocarro a Lisboa no dia 26. Quatro, mais cansados ou feridos ficariam para trás, regressando mais tarde. Às sete da manhã as camionetas chegavam ao Cais do Sodré onde eram esperados por familiares e “muito povo”. Foram dadas “vivas a Portugal e à sua marinha mercante”.

Mas a felicidade não foi para todos. Confirmaram-se cinco mortos: “Uma mulherzinha sabia pelas notícias dos jornais que o seu marido tinha sido uma das vítimas. O mar não o havia poupado. Morrera quando se deu o torpedeamento. Apesar disso, numa esperança sem fim, foi ao cais. A notícia foi-lhe confirmada. Ficou então como louca. Só nesse momento teve a certeza…”

Carlos Guerreiro

Sem comentários:

Enviar um comentário