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quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

«O homem que veio do Outro Mundo» (1)
Uma vida que a guerra interrompe

Numa quinta-feira, 22 de Novembro de 1945, o jornal Diário Popular, inaugurado três anos antes, trazia na primeira página e em grandes parangonas a história de um português que estivera preso em Dachau, um dos tristemente célebres campos de concentração nazis que até em Portugal tinham sido notícia.

O homem chamava-se José Agostinho das Neves, um dos milhares de portugueses que se encontravam em França nos anos 30 - por razões políticas ou económicas - e a quem a II Guerra Mundial tinha marcado de forma indelével. A reportagem, assinada por Fernando Teixeira, prolongava-se por quatro longas páginas em duas edições distintas, um texto que iremos transcrever aqui nas próximas semanas.

Painel sobre José Agostinho das Neves na exposição dedicada aos
"Trabalhadores Forçados Portugueses no Terceiro Reich".
A fotografia maior é uma ampliação de uma das imagens e
sobreposta ao painel pelo autor deste blogue.
A vida deste prisioneiro português, um de várias centenas como se percebeu recentemente, foi reconstituída nos últimos anos por trabalhos como os da jornalista Patrícia Carvalho e, especialmente, pela equipa de historiadores liderados por Fernando Rosas que se dedicou ao estudo dos "Trabalhadores Forçados Portugueses no Terceiro Reich". É essencialmente com recurso ao material deixado por estas duas fontes que o "Aterrem em Portugal!" acrescentará alguma informação adicional na introdução dos diversos artigos.

Neste trecho José Agostinho das Neves relata a forma como vivia em França e o primeiro período como prisioneiro num campo de concentração francês. Trata-se da transcrição de cerca de metade da primeira reportagem enviada por Fernando Teixeira. O restante, onde se relata o transporte de França para Dachau num comboio - que ficaria conhecido como o "Comboio Fantasma" - será transcrito na próxima semana.

Da vida de Neves foi possível apurar que nasceu em Lisboa em 1905, tendo-se assumido como um activista político de tendências anarquistas, razão porque se terá exilado em França durante os anos 20 do século passado. A sua situação económica era considerada frágil, trabalhando na construção civil e recorrendo por vezes à assistência para se conseguir manter a si, à mulher e à filha.
Em Dezembro de 1939 a sua militância política colocou-o sob suspeita da polícia francesa que o pretendia deportar. Preso em Maio do ano seguinte passaria quatro anos em Vernet até ser levado para Dachau em 1944.

Segue-se a transcrição da primeira parte da reportagem, que será a única da época a contar a história de um português nestas condições..


O Homem que veio do Outro Mundo
Um português que esteve em Dachau até ser libertado pelos americanos dá uma impressionante entrevista ao “Diário Popular”

Estava diante de mim, confuso, tímido, alegre, os olhos pequenos a bailar atrás dos óculos. Parecia uma criança perturbada com a presença de um adulto. E, afinal, é bastante mais velho que eu…
Tínhamos-nos encontrado há pouco tempo e éramos já amigos. Amigos, sim. Mal nos conhecíamos, mas éramos ambos portugueses, o acaso pusera-nos, um em frente do outro – e eu, chegado há dois dias, não conhecia alguém em Paris.

Interessei-me pela sua sorte, ouvi-o com interesse, mais de português que de jornalista. E ele tinha tanto para dizer-me… Senti bem que as suas palavras não eram para o homem dos jornais, mas para o compatriota.

Primeiro tinham vindo as perguntas atabalhoadas, doidas, a esmo: “Como está Lisboa?”; “Ainda há esplanadas na Avenida”; Quem trabalha no Nacional?”; Que livros publicou o Ferreira de Castro?”. E, a desculpar-se: “Aqui não se sabe nada. Parece que estamos nos antípodas”.

Depois, a voz tinha inflexões mais tristes e o estribilho voltava sempre igual: “de resto, comigo não admira, eu vim do Outro Mundo”. “Eu vim do Outro Mundo”…

E veio, o pobre. De um Mundo que muitos conheceram, mas do qual nem todos podem ter a paradoxal felicidade de trazer recordações. De um Mundo que foi mancha e desonra de homens, que foi expiação e vingança. De um Mundo que não poderá voltar a existir, que nós não queremos que volte – o dos campos de concentração.

Bebíamos uma cerveja pálida, sem espuma e sem pretensões. Mas ele gostava. Tantos meses sem uma gota de vinho… Depois, dividimos o maço de cigarros – portugueses! – e a conversa animou. Eu olhava-o com ternura. Os seus modos, os seus gestos, as suas palavras não podiam esconder aquilo que o dinheiro às vezes e em vão pretende arranjar: a educação e a cultura. Fiz o possível por o pôr à vontade. Ele percebeu e gostou de poder ter alguém - finalmente! – a quem contar a sua longa história.

“Eu vim do Outro Mundo”…

Deixei-o falar, olhando-o bem de frente quando sentia que procurava fazer-se acreditar e até tinha medo que o suspeitassem doido ou mentiroso, ou evitando um ar curioso quando a vergonha e a miséria afloravam à sua memória. E ele contou, longos minutos estirados naquele fim de tarde, a história sem par que viveu no cabo da Civilização.

1940. A França é invadida. Os alemães aparecem, de surpresa, em toda a parte. Um motociclista chega, às vezes, para tomar uma aldeia. O exército está em frangalhos, batendo-se os soldados, surpresos da sua sorte, até morrer. Os blindados do Reich entram em Paris. As ruas, tristes, nebulosas, sem vivalma, enchem-se de fardas verdes e “souris gris” – as alemãs que o parisiense nunca mais esquecerá.

As arcadas da Rue de Rivoli são longos mostruários de estandartes vermelhos onde a cruz gamada é a marca do terror. Uma denuncia chega. E um dia ele é preso. Quem foi que o disse anti-nazi? Nunca o soube; nunca mais o saberá. De que o acusavam? Jamais poderá conhecê-lo. Nem mesmo lho podiam dizer aqueles que o dirigiram durante longos meses.

Um dia foi preso – e isso bastou. Que interessavam as razões e o seu julgamento? Preso, era anti-nazi certamente. Preso era evidentemente contra Hitler. Preso, era mais um para destruir. Haverá uma pena que castigue quem de tal regime era responsável? Chegará uma morte para vingar centos de milhar?


Trabalhador rural e empregado no correio

Mas é melhor deixá-lo falar:

- Eu tinha uma Agência de Livraria. E uma casa. E mulher e filha. Tudo abandonei à pressa, sem guardar um franco ou um cigarro, sem lhes dar um beijo. Meteram-me num camião frio e cinzento. Adormeci nos solavancos da estrada. Acordei no campo de concentração de Vernet de Ariège. Olharam-me, interrogaram-me. E, não me podendo classificar como culposo de qualquer delito, resolveram instalar-me na secção de suspeitos, dos vigiados. Todos os dias, olhos curiosos espiavam os meus gestos, os meus movimentos, ouvidos atentos escutavam as minhas conversas com companheiros de desdita. Depois, desiludidos, mudaram de táctica. E para não ficarmos inactivos, resolveram dar-nos trabalho. Eu – não sei ainda hoje a que devo tal sorte! – fui escolhido para trabalhar nos arredores. O que isto representava de sorte no meio da tragédia quotidiana! Trabalhar nos arredores, era estar num dia inteiro ao ar livre, longe do espectáculo penoso do campo, respirar! Foram esses os melhores dias da minha vida de prisioneiro. Cortando árvores, revolvendo a terra, plantando e colhendo – eu e os outros fizemos de um terreno baldio uma terra e cultura. Dava gosto vê-la, verdejante, cheia de vida. Mas, alcançado que foi o objectivo, terminara o trabalho de excepção. Que me esperava agora?

“Você é dado às leituras, pois vai trabalhar no Correio”.

E fui. A coisa não caminhava mal. Recebia as cartas e as encomendas. E distribuía-as pelos outros. Que mais poderia eu desejar? Só a alegria de ser o portador de boas novas, o seu traço de união com a Vida!... Sim, que mais poderia eu desejar?... Depois, com o pretexto de eu conhecer quatro línguas, sou transferido para os serviços de censura. Não aqueço o lugar. Repugna-me ser obrigado a abrir correspondência alheia. Digo-me doente. Volto aos correios. E ali fico até que os alemães tomam conta do campo quando da ocupação total da França. Aparecem então os médicos da “Gestapo”. Fazem várias inspecções. Arranjo processo de esquivar a todas - menos a uma. Sou considerado forte para novas proezas. E as provações e as torturas começam.

Reportagem de Fernando Teixeira, in Diário Popular, 22 de Novembro de 1945

(Na Próxima semana transcreveremos a segunda parte da reportagem publicada pelo jornal no dia 22 de Novembro de 1945)

--- Leia aqui as PARTE 2PARTE 3PARTE 4.

2 comentários:

  1. Eu diria antes uma relíquia. Já todos lemos e relemos estes assuntos mas contando por um português aproxima-nos da historia e da realidade que ocorreu há não muito tempo atrás, e que o mundo tende a esquecer.

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