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sábado, 25 de junho de 2011

Fatos de banho e a imoralidade de costumes

“É manhã. Uma manhã luminosa que dá alegria de viver. Grandes chapéus de sol parecem flores gigantescas à sombra das quais crianças brincam na areia. (…) Barcos à vela passam ao largo semelhantes a asas de gaivotas roçando o mar. Tudo é azul, azul, azul. No céu não corre uma nuvem e o mar reflecte a cor do céu. Mas se desviando os olhos do céu e do mar os pousamos sobre praia, que contraste! Faz pena o espectáculo que se nos depara: tanta nudez sem pudor a exibir-se em maillots inconvenientíssimos e tanta imoralidade de costumes a ostentar-se nos banhos de sol!

Julgava que teria de deixar a Figueira da Foz com esta triste impressão de que, afinal, estrangeiras e portuguesas se não distinguem pois em quàsi 15 dias nunca vi um único fato de banho que obedecesse às regras da moral. Que tristeza!

Mas esta manhã, com que alegria eu vi aparecer algumas raparigas com os fatos de banho aprovados pela Mocidade Portuguesa Feminina. ”



Carta publicada na edição do boletim do MPF de Setembro de 1941.
(Blogue Ilustração Portuguesa - http://revistaantigaportuguesa.blogspot.com)



São apenas algumas das linhas assinadas por uma Maria Joana, publicadas – com destaque de página - no boletim oficial da Mocidade Portuguesa Feminina (MPF), de Setembro de 1940.

Não é fácil perceber se se trata de uma carta real ou de uma “publicidade” disfarçada, já que após o texto principal pode ler-se, num suposto post-scriptum, a morada e o local onde os fatos de banho da MPF “poderão ser requisitados”.

Real ou forjada a carta reflecte preocupações da época. Nos meses anteriores ao Verão de 1940 o país assistiu ao primeiro fluxo – que se intensificou depois - de refugiados que traziam consigo novos modos de vida e costumes.

As mulheres invadem as esplanadas. Bebiam e fumavam. Traziam saias justas, mostravam os joelhos e deixavam muita gente incomodada. Seria, no entanto, nas praias que a “moralidade” portuguesa sofreria o maior choque.


Publicidade ao Estoril publicada em Setembro de 1939.
(Blogue Ilustração Portuguesa - http://revistaantigaportuguesa.blogspot.com)



Muitos refugiados trouxeram fatos de banho demasiado “avançados” para os costumes do português. Outros nem os tinham e no calor de Verão tudo serviu para ir à água, despertando o voyeurismo e o sentimento de pudor entre os dirigentes portugueses.

Não é assim de estranhar que, no ano seguinte, surgissem medidas para “zelar pela moralidade pública e (…) evitar a corrupção de costumes”.

No dia 5 de Maio de 1941 era publicado no “Diário do Governo” o decreto n.º 31 247, regulamentando o uso de fatos de banho nas zonas balneares.

 
Capa do Século Ilustrado de 1940. Um ano depois este fato de banho seria considerado imoral.
(Século Ilustrado - Arquivo Municipal de Portimão)

O relatório que precedia o decreto-lei começava logo por explicar que “que factos ocorridos durante a última época balnear mostraram a necessidade de se estabelecer, com a precisão possível, as normas adequadas à salvaguarda daquele mínimo de condições de decência que as concepções morais e mesmo estéticas dos povos civilizados ainda, felizmente, não dispensam”.

O legislador tenta aplacar os medos de um moralismo demasiado espartano garantindo que não se pretende “destituir às praias o aspecto do século passado”, nem impor modelos “rígidos que destoem completamente do movimento da vida moderna”.

“Quem estudou os modelos estava orientado, ao mesmo tempo que por princípios de ordem moral, por princípios de ordem estética: estética individual e colectiva”, salienta, reforçando que o legislador “procurou uma fórmula que conduzisse ao menor sacrifício de uns e de outros”.

O trabalho era considerado tão completo que o relatório concluía que “quem, neste caso, se queixar da fiscalização desperta logo a ideia de que não teve os cuidados bastantes para evitar ser multado”. Em poucas palavras a possibilidade de uma reclamação ser reconhecida como válida era… nula.

De facto a única forma de contestar a aplicação das coimas passava por uma “prova fotográfica” tirada em circunstâncias muito especiais. “A fotografia será tirada no próprio acto do levantamento do auto; o agente certificará que o foi e declarará no julgamento se a reconhece como a própria”.


Fatos de banho da MPF.
 (Blogue Ilustração Portuguesa - http://revistaantigaportuguesa.blogspot.com)


Em traços gerais o fato de banho masculino tinha de cumprir os seguintes critérios:

“Fato inteiro em que o pano anterior se prolonga cobrindo toda a frente do calção, de costura a costura lateral. O calção deve ser justo à perna, de corte direito e terá um comprimento de perna mínimo de dois centímetros. A frente do fato, qualquer que seja a forma do decote, deve cobrir a parte anterior do tronco, tapando os mamilos. As costas podem ser decotadas até à cintura.
(...)

Não é permitido o uso de fatos que se tornem imorais pela sua transparência e pela excessiva elasticidade do tecido. (…)


No caso das mulheres as imposições não eram menores, antes pelo contrário:


“O fato de banho para senhoras deve ser inteiro e ter saiote fechado. O calção interior é justo à perna, de corte direito e deve ter o comprimento de perna mínimo de dois centímetros.
O saiote, que pode ser independente do corpo do fato, terá o comprimento necessário para exceder, pelo menos de um centímetro, a extremidade inferior do calção depois de vestido.
A frente do fato deve cobrir a parte anterior do corpo, não podendo o decote ser exagerado, a ponto de descobrir os seios. As costas poderão ser decotadas até dez centímetros acima da cintura, sem prejuízo do corte das cavas que devem ser, quanto possível, cingidas às axilas.”

As penalizações para o não cumprimento destas regras obrigavam ao pagamento de uma multa entre 30$00 a 5.000$00 (0.15 Euros a 25 Euros). Caso esta não fosse paga de imediato podia ser substituída por pena de prisão, nunca superior a um mês.

Quem vendesse fatos de banho que não respondessem às exigências também podia ser punido.

Outras alíneas restringiam o uso de fato de banho a praias, piscinas “e outros locais destinados à natação, sendo rigorosamente proibido ostentá-los fora desses lugares”.


Jovens com fatos de banho aprovados e que cumprem as regras da moral pública. Capa do Boletim da MPF de Setembro de 1941. 
 (Blogue Ilustração Portuguesa - http://revistaantigaportuguesa.blogspot.com)

O decreto acabaria por receber algumas críticas que tiveram eco na imprensa, onde eram alvos de crítica directa e mordaz. Foi isso que fez o “Diário de Lisboa”, na sua edição de 7 de Maio de 1941.

Na primeira página, numa coluna com noticiário breve e comentários, surgem algumas linhas que resumem o pensamento vigente.

“Os novos fatos de destinam-se a afastar para longe o impudor. A decência fica bem, mesmo nas praias. O nu, apesar dos que o aplaudem, encerra elementos de tentação suspeita, estendendo até às almas desprevenidas o perigo que as perturba e desencaminha.

Em oposição a estes princípios basilares duma sociedade que não abdica dos seus títulos de glória, escreve-nos alguém que nos dias mais ou menos isto:

«O pudor é um sentimento que não deve ser defendido com grades de ferro; está dentro de nós, enraizado no nosso coração, sem que seja necessário considerá-lo exposto a assaltos e profanações».

Tudo isso se afirma mas também não oferece dúvida que todos os povos, em qualquer época, que consentiram no desenfreado prazer dos sentidos acabaram por entregar a lama ao diabo.”

Carlos Guerreiro

5 comentários:

  1. Nasci em 1942. Ainda sou do tempo em que os fatos de banho masculinos, quer para adultos, quer para crianças, não permitiam ter o tronco nú. E quem os baixasse, arriscava-se a ser multado pelo cabo do mar, um homem da Marinha que havia em cada praia.
    As restrições para as senhoras eram realmente como as que se mostram neste interessante artigo.

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    1. Este comentário foi removido pelo autor.

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    2. Ainda bem que não me afastei muito da verdade. Tentei recolher o máximo de informações possível para que o artigo tivesse próximo da realidade.

      Fico satisfeito por tê-lo conseguido.

      Um grande abraço Eduardo,

      Carlos Guerreiro

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  2. convém referir, Carlos Guerreiro, que essas fotos, bem como o tema abordado têm a ver com o meus livros, "História das Organizações Femininas do Estado Novo" e "Mocidade Portuguesa Feminina".

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    1. Minha cara Irene...

      Tenho lido com bastante interesse livros seus, mas confesso que não li os que refere. Acredito que tenha abordado o assunto de forma mais abrangente do aqui faço, mas não foi de lá que retirei a historia.

      Recordo-me que consultei a imprensa da época - que deu bastante destaque ao assunto - e alguma outra documentação.

      Quanto às fotos. Sob as legendas está referido o blogue de onde foram retiradas e trata-se de facto de um blogue da sua autoria, onde era possível encontrar uma grande riqueza de materiais...

      Foi com estupefacção que assisti à "mudança" de morada do referido blogue, devido a idiotices alheias...

      Um abraço
      Carlos Guerreiro

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