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sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

O correspondente em Lisboa

Começamos a publicação dos quatro artigos que levaram à expulsão do jornalista Walter Edward Lucas, com o artigo onde o director do PM, Ralph Ingersoll, apresenta o seu novo correspondente em Lisboa.

A publicação aconteceu a 3 de Dezembro de 1940 e o artigo pinta a cidade de Lisboa com cores muito próximas de um filme de mistério feito em Hollywood. Walter Lucas reconhecerá mesmo, durante os interrogatórios a que foi sujeito, que existiram exageros vários por parte do responsável da publicação.

Fica o artigo…


LISBOA, A EXTRAORDINÁRIA , É A ÚLTIMA CAPITAL LIVRE DA EUROPA
Apresentando o novo correspondente do P.M.
Por Ralph Ingersoll

Berlim pode ser a cidade mais desanimada da Europa e Londres a mais inspiradora, mas Lisboa é a mais extraordinária.

É a única capital «livre» da Europa, a única capital em que um passaporte permite a entrada a pessoas de todas as nacionalidades e religiões e cor. O que não quere dizer que seja fácil entrar lá, mas que se pode lá entrar.

Aviões alemães com a cruz suástica na cauda e ingleses com discos brancos e azuis nos costados encontram-se lado a lado no aeroporto de Sintra.

Diariamente partem aviões para algures em Inglaterra, para Madrid, Barcelona, Roma, marselha, Sião, Stuttgart, Berlim, Tanger e, depois da Horta vulcânica, depois das censuras nas Bermudas, para o campo La Guardia de Nova York.

No restaurante Negresco, ao fundo da Avenida da Liberdade – que estavam para mudar para Avenida Imperial até que considerassem isso conveniente num mundo governado por Hiltler – no Negresco, que é o melhor restaurante, não há duas mesas em que se fale a mesma língua.

Nem também falam a mesma língua mais do que algumas pessoas das centenas que enchem a rua à porta do Quartel General da Gestapo portuguesa, e que ali estão ao sol, horas e horas, dias e dias, esperando ouvir se a polícia portuguesa está a escutar Berlim ou Londres nessa manhã.


Águas furtadas para generais

Lisboa, onde generais americanos dormem em águas furtados porque não conseguem um lugar no hotel. Onde Peixeiras ainda andam descalças com as canastras à cabeça – ao lado de táxis, ao lado de sinalagem luminosa que é tão recente e maravilhosa que ainda há multidões que param para ver a mudança das luzes de vermelho para verde.

Lisboa onde os candeeiros públicos são como jardins e as trepadeiras descem de pequenas caixas colocadas em janelas a dez pés de altura. Lisboa, onde começam a trabalhar às dez e terminam para conversar e dormir. Onde às onze saem das repartições para ir para o cafés ler os jornais em que não há nenhumas notícias porque, se os jornais dessem algumas, poderiam ofender os alemães ou os ingleses.

Lisboa, onde há apenas duas espécies de estrangeiros: pessoas com dinheiro e sem documentos, ou pessoas com documentos e sem dinheiro.

Lisboa, onde, quando os ingleses prenderam marinheiros holandeses por insubordinação, os alemães os levaram de avião para Berlim, na manhã seguinte, às oito horas. Lisboa, onde, quando estais à varanda de qualquer casa, vos mostram, apontando para o rio, o lugar em que os alemães fretaram o seu ancoradouro, onde vos levam à casa que o Estado Maior Alemão escolheu para seu uso.

Ralph Ingersoll
Lisboa, onde o melhor jantar que podeis encontrar custa $1.50, precisamente o preço de uma escova de dentes que foi importada. Lisboa, por onde transferem secretamente os aviadores franceses que foram escondidos, como amigos, pelos ingleses e americanos. Lisboa, donde vão homens para morrer em frente dos pelotões executores em Espanha, donde vão sempre que terminou o tempo que lhes foi concedido para estar em Portugal e os portugueses lhes não prolongam a licença de estadia.

Os americanos não estão receber nenhumas notícias de Lisboa. Não estão a receber nenhumas notícias porque o Governo português está com muito medo de ofender seja quem for. Se escrevêsseis uma simples história acerca do tempo e a tentásseis passar para ser publicada no Sião, os censores portugueses teriam ataques histéricos.

«P.M.» não publicou mais notícias de Lisboa do que qualquer outro jornal. O noticiário Internacional do «P.M.» é fornecido pela United Press. Em Lisboa o representante da United Press não fala inglês. O número do seu telefone não está na lista. O seu escritório fica no quarto andar das traseiras de um prédio de uma rua secundária. O papel das paredes está a cair.

Porque creio que Lisboa é um dos lugares mais interessantes do mundo, quando lá estive procurei o homem que mais indicado estivesse para dar notícias de Lisboa aos leitores do «P.M.».

Encontrei-o na pessoa de W. E. Lucas, correspondente do «Times» de Londres, correspondente experimentado na América. Ainda não há muito anos que se encontra em Lisboa. A sua esposa é americana de Chicago.

O sr. W.E. Lucas é inteligente e impressionável. Não só conhece, mas sente a tragédia das pessoas que se encontram sós e privadas do seu direito civil, das pessoas com documentos e sem dinheiro, das pessoas que podem ser fuziladas em frente a um muro, na próxima semana, em Madrid, se alguma coisa se não fizer para o evitar. E sabe escrever.


Vive num Castelo

Porque Lisboa é Lisboa o sr. W. E. Lucas vive num castelo que arrendou, castelo esse que o Estado Maior Alemão escolheu para vir a ser o seu quartel general.

Quando o sr. W. E. Lucas tentou lá dar um baile parra arranjar dinheiro para os seus concidadãos ingleses, os alemães convenceram a Gestapo a mandar soldados com espingardas a-fim-de não deixar entrar os convidados.

O comandante de um cruzador americano ofereceu-lhe a charanga de bordo para tocar no baile. Os alemães levantaram com esse facto um incidente diplomático. Assim, a tripulação do cruzador cotizou-se para contratar uma banda de música local. Mas, depois de a banda ali ter chegado, apareceram soldados com espingardas ao portão para mandar embora os convidados e não houve baile.

O sr. Lucas não recebeu outras indicações sobre o que deve escrever se não dizer-nos o que se passa em Lisboa. Os seus primeiros artigos tratam das pessoas que ali se encontram e das suas histórias e esses trouxe-os comigo.

Espero que ele possa passar outros artigos através do Atlântico pelos Clippers. Não posso garantir que eles cheguem aos estados Unidos, mas enquanto cá chegaram, «P.M.» publicá-los-á. O seu primeiro artigo vai publicado nesta página.

PM, 3 de Dezembro de 1940  

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Para ler mais sobre a expulsão de Walter Lucas clique AQUI.

2 comentários:

  1. Transcrição de um artigo muito importante, porque transcreve a vida de Lisboa em Dezembro de 1940.
    Obrigado Carlos pela partilha.
    Fernando Laureano

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    Respostas
    1. Até ao final do mês seguem-se mais três artigos - esses da autoria de Walter Lucas - e que julgo ainda mais interessantes que este... Lucas estava já há um ano em Portugal quando os escreveu, e era também correspondente do "The Times" de Londres. Tinha por isso acesso a muita informação interessante. E esses artigos também não estiveram sujeitos às censura prévia...

      Boas leituras
      Carlos Guerreiro

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